José Alfredo Graça Lima assistiu ao lançamento da negociação entre União Europeia (UE) e Mercosul no Rio de Janeiro em 1999. Entre 2002 e 2005, foi chefe da missão brasileira na UE, cargo equivalente ao de embaixador. Está entusiasmado com o acordo entre os dois blocos econômicos, mas faz ponderações:
– Quando recebemos a primeira oferta agrícola europeia, entre 2003 e 2004, era muito modesta, abria a perspectiva de um acordo extremamente desequilibrado. A negociação passou por crises, mas nunca se rompeu. Houve momentos de maior ou menor desinteresse por parte de um ou outro bloco. A falência da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) influiu muito para que demorasse 20 anos para ser fechado.
Cotado para ocupar o Ministério das Relações Exteriores no atual governo, avalia que o "acordo UE-Mercosul caiu no colo de Bolsonaro", por ser obra de duas décadas de negociação. Estima aprovação por todos os 32 parlamentos envolvidos em prazo de um a dois anos.
Como vê o acordo?
Com entusiasmo, porque o período não vinha oferecendo muitas perspectivas, tanto para o comércio global como para agentes econômicos, sobretudo os países do Mercosul. Apesar do discurso, não tinha havido até agora ação concreta, nenhuma perspectiva favorável em termos de liberalização comercial, de transformação do quadro econômico a partir de maior abertura. Quando foi lançado, não havia expectativa de que pudesse ser concluído no mandato de FHC. E por diversas razões, atravessou todo o período PT e mais o governo Temer sem que se estabelecesse ‘dinamica de cierre’ como a dos últimos meses. Caiu no colo de Bolsonaro.
Vamos ser sinceros, os números são um pouco enganadores. O fato de haver milhões de consumidores nos dois lados do Atlântico não significa que serão melhor atendidos no curtíssimo ou curto prazo. Haverá, certamente, ganhos de acesso.
O que permitiu fechar agora?
Vários fatores, o mais importante é o fato de o cenário estar bastante desfavorável, com tensões comerciais em alta, com a disputa entre Estados Unidos e China se prolongando. Vamos ser sinceros, os números são um pouco enganadores. O fato de haver milhões de consumidores nos dois lados do Atlântico não significa que serão melhor atendidos no curtíssimo ou curto prazo. Haverá, certamente, ganhos de acesso. Limitados, naturalmente. No caso do Mercosul, os produtos de maior interesse exportador (agrícolas) estarão restritos por cotas. Outros serão objetos de preferência. Isso não é propriamente livre-comércio. Mas é um passo na direção certa. Estimulará outros parceiros a também buscar com Brasil e Mercosul melhores condições de concorrência. Influiu também a necessidade do Mercosul de melhorar seu próprio funcionamento. O volume de comércio entre esses países ficou muito restrito. Os grandes mercados estão fora da América do Sul, como China, EUA, o novo Nafta (Canadá, EUA e México), outros países asiáticos. Depois vem a Europa. Mas tem uma qualidade especial. Como os europeus fazem muitas exigências, sobretudo em produtos agrícolas, em qualidade e segurança alimentar, outros mercados ficam mais ou menos abertos de acordo com a penetração no mercado europeu.
Houve decepção com a cota de exportação de carne bovina do Mercosul à UE, de 99 mil toneladas ao ano (t/ano), porque esteve sobre a mesa oferta de 140 mil t/ano?
Em alguns pontos haverá. Aí vai ter de comparar ambição com realismo. A cota de 140 mil nunca foi aceita pelos países-membros da UE. Foi uma proposta da Comissão Europeia (formada por executivos por área, como um ministério), que o Mercosul na época começou insatisfatória, porque cota sempre será insatisfatória. Porque é uma restrição quantitativa. Assegura a entrada, mas limita o livre-comércio. Nega a lei da oferta e da demanda. Por isso, sempre fui, por princípio, desfavorável à cota. Mas é uma realidade, que não pode deixar de reconhecer. E se o próprio Ministério da Agricultura acha que é bom negócio, eles têm seus cálculos. Há certamente ganho de curto prazo. Tem de pensar, no longo prazo, no próprio livre-comércio. Limitar para todo o sempre não é desejável.
Isso tudo deve levar de um ano a dois. Cada parlamento nacional tem seu próprio prazo. Os parlamentos são soberanos, mas não tenho dúvida de que vai passar. Aqui, haverá muito boa vontade.
Como tem de passar por 32 parlamentos, qual o prazo para entrar em vigor?
Passa primeiro pelo Conselho da UE (voz dos governos dos países, que aprova legislações, composto por ministros dos governos de cada membro). Foi o Conselho que autorizou a Comissão a negociar, que tem esse mandato, mas não poder decisório, é o braço executivo da UE. Se o Conselho aprovar, passa para o Parlamento aprovar, depois para os 28 países. E pelos quatro do Mercosul. Isso tudo deve levar de um ano a dois. Cada parlamento nacional tem seu próprio prazo. Os parlamentos são soberanos, mas não tenho dúvida de que vai passar. Aqui, haverá muito boa vontade.
O crescimento de partidos contrários à integração da Europa pode atrapalhar?
Há risco, mas não por esse motivo. Mais por motivos econômicos, resistência de setores.
É uma absoluta novidade o fato de dar cota para empresas europeias. Isso até pode criar uma incerteza para asiáticos, ou até tratamento considerado discriminatório.
Essa resistência não pode ocorrer também por setores da economia no Brasil e no Mercosul?
Tudo o que era considerado sensível para o Brasil foi plenamente coberto, a começar pelos automóveis, que têm até cota (limite numérico para entrada de veículos europeus no Mercosul sem imposto de importação). É uma absoluta novidade o fato de dar cota para empresas europeias. Isso até pode criar uma incerteza para asiáticos, ou até tratamento considerado discriminatório. Quando houver uma situação nova, daqui a dois anos, pode ser bom. Outros mercados vão procurar Brasil e Mercosul para fazer acordo com os mesmos dispositivos, ou semelhantes. Não estou de maneira nenhuma satisfeito com cota, mas muitas vezes é um mal necessário para que haja algum aumento de comércio.
O acordo prevê que empresas europeias terão o mesmo acesso do que as nacionais em editais públicos. Isso pode gerar reação?
É excelente, entra na parte do ganho institucional. São obrigações que o Mercosul assume o o tornam mais integrado, mais aberto. Compras governamentais. na época do governo Lula, do Celso Amorim (ex-ministro das Relações Exteriores), eram consideradas parte da política industrial que dava ao país o que chamavam de “maior espaço de manobra”. Na verdade, era para operar à margem da regra. É um tema que nunca chegou a ser coberto pelas regras da OMC (Organização Mundial do Comércio, que estabelece as regras das compras e vendas entre países). Seria problema para governos que apostavam em conteúdo local, exigências que já eram proibidas em termos de subsídio. Todo país tem suas próprias regras. Permitir que outros países façam parte das concorrências é bom para a economia. Significa redução de custo. É importante, e casa perfeitamente com o discurso de Paulo Guedes (ministro da Economia).