Ele foi disruptivo antes que a expressão virasse moda. No final da década de 1980, Ricardo Semler virou de cabeça para baixo a empresa da família que assumiu aos 18 anos, a Semco, e escreveu o livro Virando a Própria Mesa, editado até na China. Na época, fez o que hoje virou mantra das corporações sintonizadas em seu tempo: deu mais liberdade aos funcionários, abrindo espaço para criatividade e ousadia. Inspirou-se em conceitos dos países nórdicos. Hoje, está mais perto até geograficamente da fonte: passa cerca de 40% de seu tempo em Amsterdã, de onde dirige uma consultoria internacional que implanta seus conceitos de gestão. No final do ano passado,
Semler voltou a marcar a cena nacional ao escrever artigo para o jornal Folha de S.Paulo dirigido a "companheiros de elite", em que pedia que não votassem "com a bílis". Uma das frases era "Quem terá coragem, num almoço da City de Londres, de defender a eleição de um capitão simplório, um vice general, um economista fraco e sedento de poder, e novos diretores de colégio militares, com perseguição de gays, submissão de mulheres e distribuição de fuzis à la Duterte?" Convidado a avaliar o governo Bolsonaro até agora, Semler surpreende:
– Gostei dos primeiros cem dias.
Entenda o motivo na entrevista à coluna no início da semana passada, quando Semler esteve em Porto Alegre para cuidar de outro foco, a educação. Sua escola, a Lumiar, fez parceria com a prefeitura e passa a aplicar sua metodologia de "ensino em mosaico" na Aldeia da Fraternidade, na Zona Sul.
A elite brasileira votou com a bílis?
Hoje, há dois núcleos de suporte dessa eleição. Um é o de pessoas que acreditam em solução conservadora e que veem, bem ou mal, esse movimento populista e nacionalista como resposta. É algo entre 15% e 20%, o que não é alto se compararmos com Europa e Estados Unidos, não é um fenômeno brasileiro. Há um segundo grupo, da ordem de 30%, de gente que resolveu classificar o PT e a esquerda como mal a ser derrotado com qualquer arma, e a arma foi essa. Esses 30% vão se dissolver um pouco, são os que têm alguma chance de se questionar se tomaram a decisão correta.
Qual sua avaliação do atual governo?
Não é nada pessimista, gostei dos primeiros cem dias, por alguns aspectos inusitados.
O primeiro foi descobrir que não conseguiu se repassar para o governo autoridade suficiente para fazer mudanças substanciais. Isso foi positivo, ou seja, as forças institucionais continuam funcionando. Os equilíbrios estão em vigor, havia a mesma sensação com (Donald) Trump, de que ele tinha instaurado uma monarquia. Houve um primeiro momento em que havia essa impressão: assume, é o monarca, tem três filhos que mandam. Se é parecido com Ivanka (filha de Trump) ou Hussein e seus filhos, tanto faz, o fato é de que se trata de uma monarquia institucional. Rapidamente se descobriu que ninguém passou esse papel monárquico.
O militar que aí está hoje não é um filhote direto da ditadura, é alguém temperado por 40 anos de contrarreação.
Existia esse risco?
Havia duas hipóteses, uma bifurcação. Uma era de 'olha, este Congresso é a velha política, só tem corrupto e do nosso lado aqui só tem bonzinho, então, não manda uns tanques lá que sou capitão'. Duas coisas se demonstraram. O militar que aí está hoje não é um filhote direto da ditadura, é alguém temperado por 40 anos de contrarreação. Esse general que mais ou menos assumiu a estrutura do governo tem ideia de que alguém precisa fazer esse negócio opera enquanto todo mundo fica discutindo questões de costume, menores. O primeiro susto possível que era: 'esse Congresso não vai aprovar nada é um bando de velhacos, tanque neles', não aconteceu. A chance é diminuta. Talvez nunca tenha sido grande, mas as impressões de que alguém poderia ter ido direto para o confronto ou tornado o governo monárquico estão banidas. Neste sentido está bem.
O que mais vai bem?
Outra coisa que está bem, é ter lá dois ou três ministérios que estão atuando de uma forma ultraliberal, que não é minha escolha, mas poderia ser resultado de voto de gente diz que quer assim. O ministro da Infraestrutura está privatizando tudo. Todos os bens importantes do governo estão à venda. O Brasil está em liquidação. Qualquer aeroporto, terminal, estrada, o que você quiser comprar está à venda. É um preço que vamos pagar lá na frente, por duas razões. Primeiro, porque está vendendo baratinho, por não haver interesse substancial no Brasil da parte de compradores estruturais de outros países. Segundo,
porque está se fazendo todos os arranjos de descontos necessários, a maior parte deles são escondidos. Por exemplo, privatiza o aeroporto, mas fica com as dívidas de Infraero para o Estado. Estamos em um momento de forte liquidação geral que vai dar um alento econômico que não veio ainda. Dizer o PIB estava contando com 3%, depois com 2%, não é importante porque é resultado de transição, é um PIB de transição. Vai se aprovar alguma reforma? Vai. Vai passar pelo crivo de dizer 'a reforma passou, foi muito boa? Não. É parecida com o que eu queria? Não', mas dá a sensação de que passou algo. Esse acordo interessa a todo mundo.
Os ganhos com privatizações, mesmo antes de estancar a corrupção mais ostensiva, têm efeito estético suficiente para mudar o PIB de 2020.
Haveria outra possibilidade?
Se você olha a dívida pública, é crescente, mas é 40% do que já foi, não há importação excessiva ou dependência de petróleo. O Brasil não tem déficit público de curto prazo preocupante, tem o mesmo problema de Alemanha, Estados Unidos, mas a médio e longo prazo estaremos mortos, mas são economias que também não tem solução na extrapolação da situação atual, que é inviável. Na medida em que se vai fazendo ajustes é que se muda essa situação. Os ganhos com privatizações, mesmo antes de estancar a corrupção mais ostensiva, têm efeito estético suficiente para mudar o PIB de 2020. O grau de corrupção institucional do Brasil é o mesmo, não há indício de que, depois da Lava-Jato, esteja se dando menos percentagem nos contratos. Só está se fazendo tudo com mais cuidado. A sensação estética melhorou muito. Agora essa classe média ressabiada, que deu sustentação contra a tal da corrupção, esquerda e tudo mais, vai acabar se acomodando, porque essa é sua tônica. A é 'não mexe no meu bolso, faça questões de costume moral se quiser, contanto que não me afete diretamente, não faz algo monstruoso'. Vai se voltar ao centrão, alas inteiras de ex-PT e ex-PSDB vão se juntar para fazer uma centro-esquerda mais coerente. O país será comandado por um centrão conservador, o que para o país, a médio e longo prazo, em termos de investimento e PIB, vai ser muito bom. O governo não vai fazer grande diferença em termos de escolher um novo regime econômico, não vai ter reforma política de grande porte. Vai se ter uma situação amorfa operada pelo Exército e segurada por um centro no Congresso, o Centrão que faz acordos do mesmo jeito que sempre fez.
Não há um destino melhor?
Se a gente não tivesse ido nesse processo de três a quatro anos atrás, de raiva, de 'derruba a Dilma e põe o Temer'... Foi burrice de quem fala com a bílis e não está pensando. Não teve ninguém que foi para a Paulista derrubar a Dilma que não tivesse elegido o Temer. Tem um processo pedagógico eleitoral que talvez melhore um pouco no próximo round, mas está todo mundo abertamente em campanha três anos e nove meses antes da hora. Essa fusão da velha e da nova política vai acontecer no próximo ano e estabilizar o país. É um atraso de quatro ou oito anos, mas na história do Brasil não é tão grave.
Tem quatro áreas na holding. A maior está na Holanda, porque cansamos de viver essa montanha-russa. Certa hora, falamos em incluir um pouco de mundo estável.
Quais os seus negócios hoje?
Tem quatro áreas na holding. A maior está na Holanda, porque cansamos de viver essa montanha-russa. Certa hora, falamos em incluir um pouco de mundo estável. Pegamos o conceito da Semco, fomos testando e descobrindo um pouco da síndrome de espeto em casa de ferreiro. Vimos que aqui estava muito difícil, tentamos em outro país. Temos sócios holandeses, fazemos o diagnóstico de onde o negócio está versus o que seria uma empresa contemporânea sustentável. Fazemos treinamento de mudança. Temos operações ainda em Japão, África do Sul, Índia.
E no Brasil?
Por ora, os acionistas não têm interesse no Brasil. A consultoria é uma facilitadora para que as pessoas, dentro da empresa, façam a mudança elas mesmas.
A Semco ainda produz?
Sim, e está indo muito bem. Vendemos sistemas de esgotamento de represamento da Vale. Calma, é um sistema que evita que eles usem represas, ou seja, estamos ajudando a Vale. Temos escritórios em 30 países em cinco anos, mas o grande negócio é uma plataforma digital que atende clientes pequeno e médio, que hoje não é atendido pelas consultorias. É um pouco como uma Uber de consultores certificados.
Como o objetivo era mexer e dar contribuição mais enfática, só podia ser na educação pública, porque tem cerca de 85% dos alunos do Brasil e isso vale para o resto do mundo.
Quanto tempo você fica no Brasil?
Uns sete meses por ano, pequenos períodos em Amsterdã. Tenho cinco filhos, todos moram aqui. Só um tem 20 anos, mas nenhum pensa na hipótese de sair. O mais velho faz geografia na USP, com a história da escola a gente acaba gerando meninos diferentes e ele é um exemplo. Tem cartão de crédito sem limite desde os 12 anos e nunca chegou a gastar R$ 1 mil por mês. Só anda de ônibus, quis estudar na USP porque não é paga. A Lumiar vai formatando isso de que se você tem dinheiro é sorte, não considera aquilo um valor seu. O mérito é se concentrar no seu talento. A linha do meu filho é a seguinte 'ou aprendo a ser perdulário como você, que gasta muito, trabalha bastante e tem de ficar nessa roda ou eu aprendo a gastar menos de R$ 1 mil por mês e posso escolher qualquer coisa na vida porque não preciso de nada'. Não é um raciocínio minimalista, ele escolheu. Ele trabalha lavando a louça em um café, todo sábado e domingo trabalhando. Nossa maleabilidade com os filhos depende um pouco da Lumiar, mas um pouco eles vêm com a gente.
Qual o papel da Lumiar?
O papel de transformação da educação é o interesse maior da Lumiar. De um lado, há a linha de 'ninguém faz nada', 'isso não tem solução' e clichês de pouca utilidade, como 'a educação é importante', e nenhum efeito. Foi uma reação ao fato de que as pessoas vinham para a empresa, eram lotes de meninos saídos da faculdade pedindo ordens do que era para fazer, como 'o que vou ser daqui cinco anos, como me visto'. Percebemos que precisávamos consertar isso em algum lugar. Ao tentar entender onde tinha começado, essa submissão a um processo quadrado, concluímos que foi no jardim de infância, por isso começamos por aí. Como o objetivo era mexer e dar contribuição mais enfática, só podia ser na educação pública, porque tem cerca de 85% dos alunos do Brasil e isso vale para o resto do mundo. Uma hora percebemos que poderia ser uma "revolução jabuticaba" e transferimos a sede para a Califórnia. Juntamos gente para tocar a parte acadêmica, dessas grifes que as pessoas querem, Harvard, MIT, Finlândia.
Em 18 anos, R$ 11 bilhões foram gastos, diretamente ou indiretamente, e o Brasil foi de 58º no ranking do Pisa (teste internacional de qualidade da educação) para a 65º. O impacto das entidades foi zero ou negativo.
Qual é o objetivo?
A pergunta era como se faz mudança com impacto visível na educação sem gastar mais. Os empresários, quando se afligiram com a má educação, começaram a investir, mas o resultado líquido é que, em 18 anos, R$ 11 bilhões foram gastos, diretamente ou indiretamente, e o Brasil foi de 58º no ranking do Pisa (teste internacional de qualidade da educação) para a 65º. O impacto das entidades foi zero ou negativo. O desenho da Lumiar muda drasticamente os resultados da escola, transforma o professor no que chamamos de tutor, cuidando de até 20 alunos, analisando como eles estão em casa, inclusive. Faz gestão baseada em competências. Sair das aulas obsoletas de matemática, química ou biologia para um sistema de projetos também não é suficiente, porque não cumpre o currículo nem dá conta para a sociedade do que faz. Investimos quatro anos em um software para criar uma plataforma digital que faz isso. Acompanha cada um dos meninos em competências, habilidade, conteúdo, você sabe como está cada um em todos aqueles assuntos, e fica claro o que faltou. Transformando o professor, trazemos mestres de fora, voluntários. Quem vem é só gente apaixonada por algo, garantimos retenção, isso muda tudo. Aumentar em 50% o Ideb de uma escola pública em um ano é relativamente fácil, a diferença é brutal. Temos oito escolas, duas na Inglaterra e uma no Colorado (EUA). Temos cerca de 120 pedidos de carta de intenção para escolas fora do Brasil, estamos nos estruturando para dar conta.
Como se faz para aumentar em 50% a qualidade de uma escola pública em um ano?
Em Porto Alegre, queremos fazer o que mais interessa, que é com escola pública. Nossa experiência é em escolas na área rural de São Paulo, onde o grau de violência e vulnerabilidade era mais baixo. Lá, o Ideb foi de 4,3 para 9,2 no primeiro ano. As condições eram mais favoráveis, mas nem tanto. Os pais ganham 60% de um salário mínimo, havia obstáculos físicos. Estamos inaugurando a Aldeia, onde a vulnerabilidade é maior, o que abre a porta para fazer um projeto em escolas de periferia. A ideia é assumir a metodologia, não a gestão. É um trabalho de convencimento e de construção de solução para os diretores que toparem, porque só está aberto a quem quiser participar. As equipes precisam estar confiantes. Precisa passar um pouco da bobagem de achar que é uma entrega para a inciativa privada. É tudo sem fins lucrativos, agora e no futuro. Não vai ter contrato oneroso, não vamos ter renda agora nem nunca.
Damos aulas sobre ortografia ou história com rap. Conforme o interesse, vamos dar conta do currículo, e a plataforma mostra que itens da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) demos conta naquele dia falando sobre rap.
É uma questão de recursos?
A percentagem do PIB, do orçamento municipal, que está sendo gasta, para nós é suficiente, não precisa gastar mais nada. Só precisa mudar o jeito de fazer, e isso está no interesse dos meninos. Esse processo parte do seguinte: estão interessados em discutir rap ou hip hop? Damos aulas sobre ortografia ou história com rap. Conforme o interesse, vamos dar conta do currículo, e a plataforma mostra que itens da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) demos conta naquele dia falando sobre rap. Essa é a transformação, que traz para escola pessoas apaixonadas: arquitetos, marceneiros, funileiros. Isso gera um interesse muito grande, que garante retenção. Só não é a versão clássica de linha de montagem.
Escolas precisam preparar para o mercado e não ensinar sociologia e filosofia, como
diz o ministro da Educação?
Nunca a ideia de estruturar uma industrialização da juventude a favor do mercado de trabalho foi justificada, nem no momento em que parecia óbvio, lá em 1908. Uma escola moderna, com meninos preparados, não é de empreendedorismo, onde se ensina inglês, se possível mandarim, fazem robótica e montam drones. Se um 1% dos alunos quiser empresariar, vai ser um espanto, porque nem 1% da humanidade é empresária. Por que estamos dizem que ser empresário é mais valioso do que ser biólogo ou sociólogo? Essa ideia de que há uma massa que precisa ser formada para então ir para o mercado de trabalho é uma bobagem sem tamanho. Uma das coisas que as pessoas não percebem também é de que quem está na escola hoje vai entrar no mercado em 2030. Alguém pode dar uma ideia do que será o mercado de trabalho em 2030? Para 2030, é preciso ter pessoas que sabem questionar, que sabem aprender sozinhas, agora exatamente o quê? Vamos dar condições para a criança se virar. É esse processo que estamos desfazendo, e não requer dinheiro, não precisa reciclar pessoas. Esse é um raciocínio empresarial nefasto de que entra na coisa pública e ensina a gerir é uma pequena parte do problema. Pegar um prefeito, um governo corrupto e ensiná-lo a gerir melhor a propina também não é útil. A questão é o que você quer essencialmente: usar o recurso formidável que existe de professores, escolas e achar outro jeito de fazer funcionar, não do jeito antigo. Isso seria fazer contribuição marginal a um conceito obsoleto. É como dizer 'seu Chevette 1973 está parado na garagem, vou dar um jeito e fazer ele rodar'. Ao fazer isso, você não transforma em um Tesla (marca americana de carros elétricos de alto padrão). Para fazer um Tesla na educação, dá para ser com partes e peças
que você já tem.