Minhas ilusões perdidas: que a covid passaria rápido, que o Brasil se sairia bem depois do desenvolvimento da vacina, que o vírus seria um só. Isso para falar das falsas esperanças coletivas. As que mais me afetaram foram as pessoais. Depois de 60 anos de “corpo fechado”, por nunca ter tido nada, e sem qualquer comorbidade, pensei ter alguma proteção. Pelas mesmas razões, caso doente, eu teria boa evolução e, por último, uma vez tendo sobrevivido, ficaria bem.
Não pense que as fantasias de onipotência me levaram ao descuido. Ao contrário, tomei todas as medidas recomendadas. Porém a entrada de uma pessoa para prestar um serviço de emergência, que estava contaminada, implodiu o edifício das seguranças.
Contratempo extra: a imunidade adquirida depois da contaminação, consolo mínimo depois do que se passou, dura menos do que paixão de Tinder. Poucos meses e estamos prontos para uma nova rodada de negociação com a morte.
Não existe corpo fechado para essa doença. Passei 15 dias num covidário, pendente do tubo de oxigênio, vivendo o inferno na terra. Vi e senti muita dor. Sobrevivi testemunhando a agonia de colegas de quarto, às vezes mais jovens do que eu. Depois disso, seria só se recuperar, comemorar e compartilhar o alívio dos meus seres queridos, certo?
Sim e não: fui apresentado à covid de longa duração, ou síndrome pós-covid, um processo ainda pouco conhecido. Fui sorteado com um sintoma duro. Sofro de fadigas: quem tem sabe que não é o mesmo que ficar cansado. Ela vem de inopino, sem lógica. Nunca se sabe o que a provoca, nem quanto dura, nem como termina. Se fosse como a eletricidade de uma casa, diria que fico em uma fase. Uma sensação de energia drenada.
Harry Potter atribuía esse efeito aos Dementadores, figuras que te privam da energia vital. Esses monstros do mundo dos bruxos certamente arranjaram bons empregos por aqui.
Sempre pode piorar. Consultando um médico que vem estudando a síndrome, soube que o único remédio conhecido é exercício duas vezes ao dia. Para um Garfield como eu, é um suplício. Faz quatro meses que saí do hospital e a jornada ainda desponta como longa e incerta.
Apesar disso, sinto-me sortudo na loteria do pós-covid. Colegas de infortúnio enfrentam depressão, lapsos de memória, labirintite permanente, deficiência cognitiva, dores que não cedem, órgãos vitais avariados. E, mais, formas leves, que não passaram por hospital, também podem apresentar sintomas duradouros.
Sairemos dessa. Eliminaremos o vírus político que nos priva da prevenção já disponível. Mas será que entendemos que seremos uma nação de enlutados? E que a imunidade de rebanho é uma temeridade que produz um rebanho de sequelados?