Semana passada, a Rita levou meu sorriso. Pior foi para sua gata Luna, que a procura miando pela casa. Bem pior para minha irmã, que perdeu sua grande amiga. Muitíssimo pior para Maria Eduarda que vai seguir sem a mãe nesse momento triste do planeta.
Rita povoava o ambiente com sua voz alta e sua fala engraçada, naturalmente ocupava o centro das atenções. Sua escuta era também generosa, psicóloga de profissão e vocação. Sua casa era porto para as amigas atracarem as almas. A fraternidade ficou órfã e sem teto.
Ela era do grupo de risco, hipertensa, diabética e tinha sobrepeso, provável culpado pelas comorbidades. Contraiu coronavírus e, mesmo sendo jovem, foi tudo muito rápido.
Uma das coisas para pensar pós-pandemia é nossa relação com a epidemia de obesidade das últimas décadas. Sim, é um momento delicado para abordar o tema. Minha irmã teve que ouvir que sua amiga “procurou” a doença, sabendo da duríssima batalha que a Rita travava contra o que via na balança. Ela me lembra alguns pacientes que acompanhei na ingrata tarefa de perder peso. Nossos corpos são desiguais, perder peso para alguns é uma barbada, para outros dificílimo.
Criou-se o termo gordofobia para quem os acusa de falta de vontade e também para sair do inferno do padrão de magreza – que pode ser igualmente temerário – como signo do corpo belo e aceito.
Estudos de epigenética ensinam que a fome de ontem é a obesidade de hoje. Penúrias deixam marcas ao longo das gerações: o organismo dos descendentes fica propenso a acumular gordura. Lembrem-se que as Américas foram povoadas de levas de imigrantes famintos.
Isso se tornou dramático pela oferta abundante de comida ultraprocessada como nunca houve. Hoje comemos mais e pior, além de que, quanto mais nocivo, mais barato o produto será. Ainda é discreto o controle e informação sobre os verdadeiros culpados por tantos problemas de saúde, especialmente o açúcar.
Alimentação é tabu. Nem todos temos interesse em álcool, drogas e outras perdições, mas a gula está ao alcance de todos. Todo bebê é guloso, acha que o alimento é solução para todos os seus males. Nós somos esse bebê amanhã. Portanto, quando se condena a desmesura alimentar alheia, ninguém ignora de que tentação está se falando.
Todos temos um gordinho interior. Por isso a crueldade com os obesos, supõe-se que eles se permitiriam um gozo que todos cobiçam. Mudar os maus hábitos alimentares da nossa sociedade nada tem a ver com perseguir os que hoje têm sua saúde abalada por essa genética infeliz.
Se não estamos dispostos a perder mais Ritas, melhor começar a repensar nossa relação com a comida. A má alimentação mata mais do que o fumo e ganha metade dos holofotes. Mas o que dizer de um mundo onde a fome anda de mãos dadas com a comida que envenena.