No ano passado não fui ao Uruguai. Primeira ausência em 40 anos. Porém tenho atestado médico. Estava me recuperando de uma lesão que impedia a marcha. Fez falta, fiquei com síndrome de abstinência do Uruguai.
Digo que viajo pela Diana. Afinal, ela é uruguaia e precisa recarregar as baterias pátrias a cada tanto. A síndrome de abstinência nela é mais severa, requer alimentar-se de medias lunas, bife de chorizo com Pomelo Salus. Escutar Jorge Drexler, Ana Prada e para a pele, Crema Curativa Dr. Selby.
Mas a verdade é que vou, como a maioria da gauchada, para curtir um país que poderíamos ter sido. Para mergulhar num sonho independentista que, mesmo inviável, nem por isso é menos pulsante. Como estamos no território do imaginado, do desejo, não precisa ser factível. Nada mais humano do que alimentar-se e embalar-se por ilusões quiméricas.
O Uruguai é o país que os gaúchos gostariam de ter para chamar de seu, com a identidade platina que compartilhamos. Somos brasileiros, mas nos sentimos aqui meio que por engano. O gaúcho é um brasileiro déplacé, palavra chique para fora do lugar, deslocado. Temos mais em comum com o Uruguai e a Argentina do que com alguns Estados do Brasil. Passando São Paulo, sinto-me no Exterior. No Prata, sinto-me em casa.
Assisti a um filme que retrata uma passagem dura da nossa história: A Cabeça de Gumercindo Saraiva (disponível no NOW). Tabajara Ruas, diretor e roteirista, fornece imagens inesquecíveis da selvageria da revolução federalista e do espírito da época. Obra que se insere em um projeto maior e incansável do autor de valorizar a pelejada e amarga história gaúcha.
No filme, os personagens ora falam português, ora castelhano, como acontecia na época. Há quem diga que o próprio Gumercindo Saraiva, comandante maragato, nem sabia falar português.
Conforme a política andava, algumas famílias se bandeavam para um ou outro lado da fronteira. Portanto, ser doble chapa, que é o nome atual para os que trançam entre as fronteiras, era usual. Restou em nós, gaúchos, um espírito doble chapa que é facilmente ativado. Existe de fato um corredor cultural e afetivo entre o Rio Grande e o Uruguai. Nossa fronteira é difusa.
Do jeito que o Brasil anda, dá uma vontade de aquerenciar-se no Uruguai. Porém, não se engane, o melhor não assa na parrilla, nem é engarrafável. Eles têm, além do luxo de serem compactos, uma tradição de boa educação e cultura que nos supera. Eles cultivam com mais intensidade o amor aos livros e à ciência. É para aprender com eles. Pensando bem, isso é ainda melhor do que torta frita y dulce de leche.