Quando maquinou a invasão da Ucrânia, Vladimir Putin e seu círculo de poder contabilizavam três variáveis decisivas para o sucesso da operação. Primeiro, imaginavam que a população local não ofereceria resistência e que a Ucrânia cairia em menos de uma semana. Sua segunda convicção é que o Ocidente, dividido e enfraquecido, não teria disposição para sair em socorro da Ucrânia. Por fim, que outras potências, como Índia e China, ficariam firmes ao lado da Rússia para criar uma nova ordem mundial.
Por arrogância e por viver em uma bolha onde contestações são encaradas como traições, Putin vê sua estratégia fracassar fragorosamente. Tudo o que ele conseguiu até agora é o reverso do que pretendia, a começar pela contenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Há três décadas, sem inimigos concretos à vista, a Otan andava meio de lado. Mesmo a suposta integração da Ucrânia à aliança era uma longínqua hipótese, até porque a Otan não aceita membros com territórios em disputa.
Finlândia e Suécia, que não pertencem à Otan, agora manifestam interesse na aliança. A Alemanha decidiu triplicar o orçamento de defesa e despachar foguetes antitanque para a Ucrânia. EUA, Canadá, Bélgica, Romênia, França e até a diminuta e pacífica Dinamarca, entre muitos outros, despejam material bélico na zona de combate e tropas nas fronteiras da Otan com Rússia e Belarus. Putin queria neutralizar a aliança, mas, com seus delírios imperiais, acabou acordando uma organização sonolenta.
A invasão produziu também a façanha de unir grande parte do mundo em favor da Ucrânia e contra a Rússia. Talvez nenhuma cena seja mais eloquente do que as bancadas republicanas e democratas no Congresso aplaudirem de pé o impopular Joe Biden quando ele defendeu a Ucrânia no discurso no Capitólio terça-feira à noite. Graças a Putin, a fenda da polarização que divide os EUA se fechou momentaneamente.
Com todos contra Putin, a União Europeia, sempre tão rachada, também se aglutinou, recolhendo inclusive o apoio dos recalcitrantes, como o autocrata da Hungria, Viktor Orbán. O então insosso novo chanceler alemão, Olaf Scholz, consolidou sua projeção mundial, enquanto o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, campeão da causa contra a UE, teve o cargo salvo pela invasão. De uma hora para outra, o festeiro Boris Johnson recobrou o oxigênio político e se animou com a inesperada condição de um dos líderes da reação à Rússia.
O fato de, na assembleia-geral da ONU, a Rússia só ter contado com o inexpressivo apoio de Coreia do Norte, Eritreia, Bielorrússia e Síria é mais do que uma derrota diplomática do Kremlin: é uma humilhação histórica que provavelmente deixou Putin possesso, a ponto de o autocrata venezuelano, Nicolas Maduro, ter ligado pouco depois para ele e reafirmado os laços com Moscou. Seja como for, os governos dos quatro maiores países da América Latina, dois de direita e dois de esquerda, Brasil, Colômbia, México e Argentina, também esqueceram suas diferenças e marcharam juntos na condenação à Rússia.
Se se levar em conta a radicalização e o espezinhamento ideológico que o mundo vive, incentivado inclusive por campanhas de desinformação originárias na Rússia, a ação desastrosa de Putin se transformou em quase um milagre de congraçamento em torno da Ucrânia. O déspota do Kremlin até colocou no panteão dos heróis da humanidade o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, que por sua inexperiência e passado de comediante gerava piadinhas de salão na elite da diplomacia europeia. Agora, muito merecidamente, Zelenski encontrou um lugar de honra na história, reservado apenas aos que inspiram bravura e resiliência diante de um inimigo avassalador e implacável.
Por toda parte, Putin fez despertar velhos ressentimentos e desentocar medidas que há muito já deviam ter sido aplicadas, como as que miram as fortunas erguidas com base na corrupção da oligarquia russa e sua ostentação brega traduzida pelos megaiates. Putin conseguiu o feito até de ressuscitar as moribundas ondas curtas. Para levar informação às populações nas zonas de guerras, a BBC de Londres está reativando seus serviços de rádio a longa distância, em russo e ucraniano, tão populares durante a Guerra Fria. Por essa, Putin não esperava.