Surpreendida por uma resistência ucraniana mais resoluta do que o planejado, a Rússia desdobra agora seu Plano B: manter canais de negociação abertos e aplicar uma crescente e brutal artilharia sobre cidades da Ucrânia. O aumento gradual da virulência russa faz parte da sua doutrina de combate e já foi implementada em dois conflitos anteriores.
Em 2000, ao intervir na guerra civil da Chechênia, o então recém-empossado presidente Vladimir Putin retirou as amarras das forças armadas que procuravam evitar danos civis e simplesmente dizimou o que restava da capital, Grozny, transformada em ruínas. Mas foi a partir de 2015, quando as forças russas se instalaram na Síria para socorrer seu aliado, o então acossado ditador Bashar al-Assad, que ficaram mais claros os métodos sanguinários de combate russo, sobretudo para áreas urbanas.
Nos primeiros dias da invasão, generais russos procuravam caracterizar a ação na Ucrânia como cirúrgica. Falavam em mísseis teleguiados e armas de precisão.
Com ações razoavelmente contidas em relação a civis, os avanços foram mais lentos do que o previsto, e a velha doutrina russa testada na Chechênia e na Síria voltou a ganhar espaço desde a segunda-feira: martelar as cidades com bombardeio pesado, aterrorizar a população para colocá-la em fuga, destruir áreas com insurgentes e então ocupar o território urbano. É o que se vê em Kharkiv. É o que se teme em Kiev.
Na Chechênia, estima-se que mais de 100 mil pessoas morreram em razão da guerra civil e na operação russa. Na Síria, 48 mil militares russos promoveram mais de 19 mil missões de combate e 71 mil ataques, matando, segundo grupos de direitos humanos, 5,7 mil civis, dos quais mais de mil crianças.
O mundo ocidental pouco deu atenção a eventuais crimes de guerra porque, na Chechênia e na Rússia, os russos exterminaram também células de extremistas islâmicos.
Na experiência síria, eram recorrentes os bombardeios com bombas de fragmentação, já vistas na Ucrânia e que foram banidas por muitos países, mas não pela Rússia, e com as devastadoras armas termobáricas, que causam explosões mais duradouras, ao que se sabe ainda não empregadas na atual operação. Os ataques pesados a cidades evidenciam que a política de contenção vai ficando para trás e que o governo russo, transformado em pária por boa parte do mundo, já não tem muito a perder para manter as aparências.
O grande problema dessa estratégia de brutalidade crescente é que ela escancara, inclusive dentro da Rússia, a balela de uma força de paz que vai ao socorro de ucranianos "reféns de um regime imoral". Ou seja, a Rússia massacra mais e mais ucranianos para "salvá-los" de si mesmos.
O resultado é que sua força avassaladora acabará aniquilando o que resta da defesa ucraniana — que deve ter munições para mais uma semana de combates ferozes —, mas semeará um ressentimento que perdurará por muitos anos à frente. E é esse rancor que explodirá em surtos de insurgência que transformarão a ocupação russa em um pesadelo permanente, como foi o Afeganistão, até que um dia suas tropas aceitem abandonar, pela diplomacia ou pelas armas, o território da Ucrânia.