No século passado, o nazifascismo e o comunismo representaram o mal sobre a Terra. Produziram ditaduras sanguinárias, fome e guerras, perseguiram minorias, exterminaram dezenas de milhões de pessoas.
Neste século, embora resquícios do passado ressurjam em espasmos aqui e ali, não se chegou ao grau de perversidade de 70 anos atrás. Hoje, a reencarnação envernizada das tiranias atende por um sistema conhecido como autocracia.
Muitas vezes, tais regimes se apresentam como democracias. Só que, abaixo da superfície, são governos autoritários que promovem o culto à personalidade do líder e sabotam sistematicamente os princípios democráticos.
O manual das autocracias prevê sua aplicação em graduações. O autocrata clássico costuma se eleger com voto popular, mas pouco a pouco vai corroendo as instituições. Com trocas de ministros e pressões, a corte suprema e a Justiça vão se tornando subservientes, o parlamento é manietado com verbas e privilégios, a oposição vai sendo silenciada por agressões e prisões, a imprensa é atacada e, pressionada por regulações que a enfraquecem, tem licenças cassadas e propriedades transferidas para amigos do poder.
No final, as eleições viram um mero jogo de cartas marcadas.
Em maior ou menor intensidade, assiste-se a esse ritual da Venezuela às Filipinas e da Nicarágua à Hungria, mas o redator do manual do autocratas chama-se Vladimir Putin. A antessala de conflitos sempre foi povoada por distorções da realidade, mas agora a Rússia de Putin elevou a difusão das fake news ao grau de ciência maligna, uma arte das sombras capaz de manipular vontades para cindir a União Europeia e de embarrar o caminho de Hillary Clinton até a Casa Branca.
No caso da Ucrânia, Putin não precisa convencer o mundo de que enviou uma "força de paz" ao país vizinho. Basta-lhe a maioria do povo russo, bombardeado por desinformações que promovam uma frente interna diante da "ameaça de inimigos externos".
Como a maioria das ex-repúblicas soviéticas, as antigas tetas estatais na Ucrânia também engordaram elites corruptas, mas nada se compara à Rússia capturada por uma oligarquia endinheirada pelas reservas de minério e petróleo que sustentam Putin, cujos delírios de poder combinam a coreografia czarista com o totalitarismo para renegar tratados e balançar o equilíbrio e a paz mundiais.
O mal das autocracias precisa ser cortado pela raiz — mas pressões e discursos de fora têm escasso efeito no curto prazo. O que os autocratas mais temem são levantes populares e dissensões no seu círculo de poder. Como evidenciam as prisões em massa de russos contra a guerra, nada que esteja fora da vigilância despótica de Putin.