Num soturno dia do outono russo de 1991, nos estertores do soturno império soviético, fui até a estação de Kiesvki, em Moscou, e tomei um trem um tanto decadente, como todo transporte na Rússia de então, para a capital da Ucrânia. O estrago econômico do regime comunista era tão profundo que uma cabine inteira de primeira classe custava 3 dólares - metade do salário de um professor universitário. Comprei uma só para mim e amanheci em Kiev para, como repórter de Zero Hora e da Rádio Gaúcha, testemunhar o surgimento de um país.
Dali a uns dias, em 1 de dezembro de 1991, nada menos que 92,3% dos ucranianos viriam a referendar a declaração de independência que deu constituição e forma ao que já era há séculos uma nação com identidade, cultura, história e religião próprias. Naqueles dias em Kiev, entrevistei noivos prestes a casar, imigrantes de outras repúblicas, comunistas pretensamente arrependidos, estudantes e políticos que moldavam a nova Ucrânia. Entrei em casas de família e compartilhei pratos típicos, como a sopa borscht e panquecas de queijo precedidos de doses de vodca que pareciam fazer aumentar a euforia com um futuro de liberdade e prosperidade.
Apesar das manchas urbanas com a soturna arquitetura soviética, Kiev já era uma cidade resplandecente, pontilhada de cúpulas douradas, mosteiros coloridos e monumentos a seu passado glorioso e sofrido. Mais de duas décadas depois, no verão de 2012, quando voltei a uma metrópole moderna, assisti aos primeiros acordes da Revolução da Praça Maidan que expulsaria o governo pró-russo dali a 18 meses. Em um evento com o presidente Viktor Yaunukóvytch presente, vi agentes infiltrados na plateia agirem rapidamente para deter manifestantes que levantavam cartazes pedindo liberdade de imprensa. Era a evidência de que a Ucrânia deixara o império russo para trás mas o longo braço do Kremlin não a deixaria verdadeiramente livre, como foi escancarado na madrugada deste 24 de fevereiro de 2022.
Ao contrário do que a máquina de propaganda do Kremlin apregoa, a Ucrânia é um país e uma nação, tragicamente forjada no sangue derramado contra inimigos externos e internos, como na II Guerra, quando insurgentes combateram tanto nazistas como comunistas. Dez anos antes, no início da década de 30, Stalin havia deixado mais de 4 milhões de ucranianos morrerem de fome. Depois, na brutal ocupação nazista, 28 mil vilas foram destruídas e mais de 5 milhões foram mortos, entre os quais 1,5 milhão de judeus. Parte da história da tibieza humana, não faltaram também colaboracionistas para agir em ambos os lados.
O soturno Putin agora apenas dá sequência às ambições de seus antecessores no Kremlin e as suas próprias, e é provável que, quando os combates cessarem, não venham a escassear governantes fantoches que restabeleçam o domínio do império. Uma Ucrânia livre não pode dar ideias à Rússia.