Por mais paradoxal que seja, é mais nebuloso se distinguir os contornos da crise na Ucrânia no curto prazo do que no longo prazo — pelo menos no que diz respeito ao lugar da Rússia no mundo. Nos próximos dias, se saberá a dimensão, a profundidade e a virulência do sorrateiro movimento russo.
Mas desde já se tem a noção de que, na perspectiva do mundo democrático, a Rússia ficará marcada como uma nação inconfiável por muitas décadas à frente ou pelo menos até que faça sua penitência sobre o crime humano e diplomático cometido contra a Ucrânia.
Gerações de jovens russos e cidadãos urbanos sonhavam com uma Rússia integrada ao Ocidente, se não cultural, ao menos economicamente, abrindo oportunidades de trabalho e futuro dentro e fora do vasto território russo. Tais gerações se livraram do jugo soviético imaginando uma Rússia democrática, próspera e admirada por sua rica história e imensos recursos.
Uma Rússia que fosse a encruzilhada entre Ocidente e Oriente, administrando de forma pacífica e democrática a inevitável disputa EUA x China, traria naturalmente Moscou de volta para o primeiro plano da diplomacia e do respeito mundial. Putin acabou com o sonho.
É muito provável que as sanções que estão sendo anunciadas em cadeia venham a ser paulatinamente absorvidas pela Rússia, que, aliás, retira historicamente do sacrifício pessoal e coletivo boa parte de sua energia política. Mas, com o passar do tempo, quem desejará manter uma relação de dependência energética com um parceiro tão instável e traiçoeiro?
Quem investirá bilhões em infraestrutura e empresas para ver tudo ameaçado de virar pó de um momento para o outro apenas pela vontade de Sua Majestade Putin, o Autocrata? Quem marcará visitas ao Kremlin para negociar acordos diplomáticos e de livre comércio se Moscou, sem nenhuma cerimônia, rasga, entre outros o Tratado de Budapeste, de 1994, que levou a Ucrânia a entregar seu arsenal nuclear - o terceiro mais poderoso do planeta na época — em troca do reconhecimento russo à integridade de suas fronteiras?
Sucessores de Macron, Scholz, Bidens, Johnsons e tantos outros pensarão muitas vezes antes de quebrar o isolamento a que a Rússia, como um novo Irã dos aiatolás, se coloca por livre e espontânea vontade. Mesmo a China, responsável pelo aval moral e econômico que turbinou a sanha de Putin sobre a Ucrânia, um dia provavelmente se arrependerá de ter criado corvos na sua vizinhança, pois eles poderão também lhe comer os olhos.
Com sua fisionomia de jogador de pôquer, Putin cometeu o maior erro de sua vida. Infelizmente, não viverá muitas décadas para ver o tamanho do dano que terá causado no longo prazo ao povo russo, levando-o ao engodo e a paz na Europa a um abismo por uma máquina de propaganda esmagadora e inescrupulosa.