Vista da Rússia, a guerra na Ucrânia nem guerra é. O Kremlin proíbe que veículos de comunicação, sites e blogs informem que esteja ocorrendo uma invasão ou guerra. Em vez disso, devem tratar a ação na Ucrânia como “força de paz” ou “operação especial militar”. Desde que assumiu o poder, há mais de duas décadas, Vladimir Putin e a oligarquia que o apoia vem silenciando a imprensa independente russa. Nesta semana, duas das últimas vozes livres – a TV Dozhd e a rádio Eco Moscou -, que levantavam objeções à guerra, foram bloqueadas sob a alegação de estarem a serviço de “agentes estrangeiros”.
Enquanto grande parte do mundo passou a ver Putin como um Saddam Hussein ou Kadafi de terno e gravata, a população média da Rússia não tem acesso sistemático a imagens de prédios bombardeados na Ucrânia, de famílias de refugiados desesperados e, muito menos, de soldados russos mortos, calcinados ou recobertos de gelo, que despontam dos campos de batalha.
Em uma iniciativa ágil e de enorme potencial para abalar o moral do inimigo, o governo ucraniano abriu um site que permite a busca por nomes de militares russos presos ou mortos (https://200rf.com/). Às cegas e vivendo a angústia sobre o destino de seus parentes e amigos na campanha ucraniana, as famílias russas tiveram o acesso ao site bloqueado pelo Kremlin. Restou o caminho de obter informações sobre o paradeiro deles via Telegram ou contatos no Exterior.
Algumas críticas e fotos que mostram uma realidade diferente daquela represada pela mídia subserviente ao Kremlin ainda circulam em grupos de mensagem, mas sempre com cuidado e receios diante do longo braço de vigilância do regime russo. Nos protestos contra a farsa eleitoral no Irã em 2009, lembre-se, os líderes dos protestos e milhares de manifestantes foram identificados, presos ou silenciados graças exatamente a essa atividade digital subterrânea.
Para dificultar a tentativa de dobrar o ânimo da população, o russo médio não é aquele que se vê pelas lentes ocidentais nos protestos contra a guerra em Moscou ou São Petersburgo. Na maioria, são pessoas simples e monoglotas, sem maiores complexidades intelectuais, que vivem em milhares de aldeias, pequenas cidades ou nas periferias das metrópoles espalhadas pelo vasto e desolado território russo. Elas enxergam em Putin a autoridade que restaurou a ordem e o orgulho nacional, tirando a Rússia do fosso moral e econômico que se abrira no tormentoso fim da União Soviética, em 1991. Esse russo médio se informa principalmente pelas TVs, quase todas estatais a serviço do Kremlin, acredita ingenuamente nas desinformações emanadas de Moscou e olha atravessado para os jovens que contestam Putin ou o conservadorismo nos costumes.
“Há uma enorme divisão de opiniões entre minha geração, gente que nasceu nos anos 90 e nunca viveu nos tempos soviéticos, e a velha geração”, explicou em artigo no jornal britânico The Guardian o escritor e podcaster russo Sergey Faldyn. “Não há na Rússia uma visão compartilhada de interpretar o mundo, mas sim uma ideia simplista de ‘nós contra eles’, que é muito fácil de se vender e obter votos. É essa a agenda que Putin empurrou na última década”.
Ao se equiparar aos antigos ditadores inescrupulosos e primitivos do Iraque ou da Líbia, Putin já perdeu a guerra de versões no mundo democrático. Resta-lhe manter o povo russo com um tapa-olho permanente até que a realidade, materializada pela derrocada econômica ou por caixões com soldados, se imponha tragicamente ao cotidiano da maioria da população.