“Que qualidades a gente deve esperar de alguém com quem se pretende ter um relacionamento amoroso?”, perguntou o jornalista. Incríveis, as perguntas que nos fazem.
Respondi o que acredito: “Aquelas que se esperaria no melhor amigo.”
Pode ser um bom critério. Não digo de escolha – pois amor é instinto e intuição –, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir.
O resto, é claro, no amor seriam os ingredientes da paixão, que vão além da razão e da sensatez, passageiro terremoto de delícias que faz tudo valer a pena, que promove os maiores erros e os melhores acertos. Salva-nos eventualmente de um desacerto irremediável a sensação que vem das entranhas, ou das tripas da alma, ou do inconsciente: o nosso instinto de sobrevivência.
A velha misteriosa intuição, que às vezes falha nessa onda de euforia e susto. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. (Por isso, também, cada perda é uma pequena tragédia pessoal.)
Falo daquela pessoa para quem posso telefonar não importa onde ela esteja, nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: “Estou mal, preciso de você”. (Ainda não tive de recorrer a isso, mas, se precisar, sempre haverá alguém, e isso me conforta. E pode ser um filho adulto.) E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for. Não precisamos sondar nossas tripas, interrogar nosso inconsciente, para ter um amigo e confiar nele.
Em geral um olhar bom, uma conversa sossegada ou interessante, pequenas maneiras de alguém novo que se instalar na nossa vida. Com sorte, para alegria.
Mas aí vem a realidade dura: o lixo na rua ou pessoas tratadas como se fossem, a mulher parindo na calçada, as multidões enlouquecidas, as ilhas dos amantes.
As brigas dos políticos, a corrupção, a vaidade, a omissão e agora a pandemia que rasteja sobre o planeta como um imenso inseto negro e carnívoro.
Por um instante a gente desliga os aparelhos, finge que nada disso existe, curte sua pequena alegria pessoal, entra no whats, no insta, ou olha as árvores tão verdes e luminosas... e vive. Do jeito que dá. Esquece as decepções, as falhas, sobretudo nossas, onde poderíamos ter agido melhor, falar na hora de falar, calar quando se devia calar... mas a gente não sabia.
Na luz que se filtra na paisagem, viramos crianças com aquele dom do encantamento, que depois serão adolescentes com suas perplexidades, euforias e medos, adultos com deveres sem conta, e por fim velhos que, se forem um pouco sábios, curtem a fase da contemplação... como faziam em meninos. A ventania (a vida real?) chega atropelando tudo: recolhem-se crianças e coisas e se olha a tempestade atrás da janela. Logo ali o grande mundo mói a vida com suas engrenagens cruéis.
Mas, naquele momento, naquela redoma de vidro simples na chuva cotidiana, fingimos estar no castelo da Bela Adormecida, ou na casa dos sete anões, ou abraçados a um melhor amigo.