Não, não quero que me julguem boazinha.
Nem em criança eu quis ser, embora tanto me exortassem, seja uma menina boazinha, fique quieta, não pergunte tanto, não corra tanto, não sonhe tanto, não desobedeça tanto... Eu achava os bonzinhos chatos, mas também não queria ser das piores.
Não sabia o que queria, e nem sei se hoje, tanto tempo depois, eu sei. Lembro de meu pai, quando
lhe perguntávamos: “Pai, você quer alguma coisa?”.
A resposta era bem-humorada: “Quero o meu sossego”.
Talvez seja isso que eu queira, embora há um ano exato em casa, por ser de alto risco, e por querer respeitar essa norma chata mas essencial, o meu sossego, embora tenha sossego demais. Concretamente talvez, mas a cabeça gira em conflitos, perplexidades, intervalos de paz. O que vai ser de nós se as coisas não mudarem depressinha para melhor? Há quem me elogie quando sou mais sincera, há quem julgue que eu devia “espalhar felicidade e esperança”... e lograr meus leitores, meus amigos imaginários, tão presentes na minha vida?
Não creio que otimismo demasiado seja uma boa arma nesta hora, que, com a quantidade de mortos, e a pouca perspectiva concreta, está mais para macabra do que felizinha. O meu recado deve ser entendido como CUIDE-SE.
Desde que comecei a escrever crônica de jornal e artigo de revista, e novamente crônica de jornal, tive o sentimento de que, se tenho voz, devo usá-la para algum fim realista: seja em poemas, seja em prosa, seja falando de amenidades, seja de assuntos como este momento de carnificina, cinismo, insanidade e perplexidade.
Então lá vamos nós, neste abre-e-fecha, faz-não-faz, pode-não-pode, morre-não-morre – mas pode ficar sequelado. Um dos meus mais amados amigos, fraterno, brilhante, generoso, ficou entubado meses, voltou para casa, com cuidadores, mas, me disse um deles outro dia, “nunca mais será o mesmo, aquele que a senhora conheceu não existe mais”. E chorei por um morto ainda vivo, tão importante para mim e muitos.
Recebemos ordens contrárias, ou vagas, ou que a toda hora mudam, e assim facilitam a desobediência. Se ele não faz, por que eu tenho de fazer? Por que eu tenho de me privar, de sofrer? Porque de verdade é sofrimento, por exemplo, afastar-se da família. Meus sete netos e netas, mais a esposa de um deles, portanto oito, são uma de minhas maiores alegrias. Dia em que um vem almoçar, outro também, as presenças jovens, bonitas e amorosas, a amizade dos filhos, iluminam a casa, e a vida de alguém para quem família sempre esteve acima de tudo, mesmo quando falhei, bobeei, sei lá.
Está ruim, está chato, está cada vez mais assustador, e assustadoramente impreciso. O jeito é ficar quieto quando se pode, sair e trabalhar com o maior cuidado do mundo, sentir as mãos secas de tanto álcool, ter vontade de pular pela janela e voar nas nuvens, ou como disse uma amiga, praticar salto com vara quando era proibido pisar na areia, mas permitido banho de mar. E não me conformo com a expressão “distanciamento social”. Sugere distância entre classes sociais, não é?
Palavras... importam.