Quase na metade da tradução de mais um Hermann Hesse (em tempos idos traduzi vários), com esse delicioso título, minha alma atormentada nestes tempos de preocupação e notícias tristes sente um certo refrigério, que doce título, que doce expressão.
Nem todo começo é assim, claro, muitas coisas na vida começam terríveis, vão adoçando, e viram um idílio – ou só pioram. Ou, pelos menos, são suportáveis. Mas, se formos menos céticos, realmente em cada novo encontro, novo trabalho, novo amigo ou novo amor existe um toque de magia que, se não formos grosseiros ou bobos demais, não há de se desfazer. Mas permanece, e se, regado com afeto e alegria, ou solidariedade e emoção, nos ilumina, se torna um jardim onde conseguimos passear nossas aventuras emocionais mais inocentes, ou menos, não faz mal.
Por algum motivo hoje me encantei, com atraso (isso às vezes me acontece, distraída que sempre ando), com a ternura desse título do livro, que fala em boa parte de memórias de infância do autor, juventude, relações familiares. Há nele um tom melancólico, e enorme encantamento com a natureza. Os tons das árvores, das montanhas, do capim, dos vestidos das irmãs, a bondade discreta da mãe, a autoridade bondosa do pai, o terror de alguns professores, por fim a descoberta de um mentor, aquele mestre admirado embora fosse uma figura excêntrica e cheia de manias. Todos, quase todos, conhecemos essa figura que em algum momento nos marcou com força, e lembramos mesmo depois de décadas, pela importância que teve. Modelo, proteção, janelas e portas abertas para a vida, estrada e conhecimento, qualquer coisa.
Então está sendo uma alegria tranquila traduzir este Hesse, sem maiores dificuldades exceto que, naturalmente, não tenho mais a resistência física antiga, de trabalhar várias horas seguidas de manhã, e a mesma coisa de tarde. Cansa-se o corpo, mas a mente continua no seu giro de lembrar, inclusive, belezas semelhantes da minha vida, e infância.
Árvores, tons infinitos de verde, chuva nas lajes, cheiro de terra molhada, passos do pai no corredor, voz da mãe cantando na sala, brincadeiras com o irmãozinho, sabor de comida em panelas de ferro, e as histórias, muitas vezes sinistras, que as empregadas adoravam me contar porque deviam ver meu pavor estampado nos olhos, e riam de mim: tudo mentirinha, sua boba.
Estamos talvez precisando, sim, de momentos de leveza, como uma amiga querida contando que nasceu mais um netinho, contrapondo-se à dor de ligar o celular de manhã e receber a notícia da morte ou adoecimento de mais uma pessoa querida, a sombra da Peste por toda parte, a tentativa de equilíbrio entre medo e calma, receio e prudência, as notícias desanimadoras ou que causam indignação, que também precisamos equilibrar, porque os tempos (que tempos!) exigem de nós o máximo de sensatez.
Então, essa magia de um novo começo me ilumina quando fico mais triste, ou tensa, e não importa que começo for, porque sempre há tantos, ainda que seja de um trabalho, um livro, uma nova pessoa, uma música que traz encantamento, ah sim, porque também precisamos disso.