Nestes tempos amargos, assustadores, com a luzinha da esperança lá longe, não me peçam para ser divertida ou boazinha.
Repito aqui a história de Pandora, enviada pelo pai Zeus, deus do Olimpo na mitologia grega, para encontrar seu futuro marido levando uma caixa selada que ela não deveria abrir. Fala-se “caixa de Pandora”, mas eu imagino uma ânfora, como nos desenhos gregos antigos. Mais elegante...
Só que, curiosa (riem os machistas), ela não se conteve e abriu uma frestinha só. Imediatamente, grande rumor, e lá do fundo saíram esvoaçando feito morcegões malignos, os males do mundo: ódio, rancor, suspeita, calúnia, crueldade, frieza, cinismo, exploração do mais fraco, e tantos mais. Quando, assustadíssima, a pobre Pandora conseguiu enfim fechar a tampa, restou lá no fundo da ânfora um último ser: a pálida esperança.
Hoje, eu a vejo mais pálida do que nunca: quem vai nos ajudar, quem nos lidera, quem nos conforta, quem nos ensina e conduz, protege e salva e nos cura? Quem nos abre um horizonte?
Muitos choram, esbravejam, reclamam, gritam, poucos – que eu veja – conseguem fazer alguma coisa. E morre gente. E morre gente. E abrem-se valas. E contratam-se caminhões frigoríficos para os mortos. Médicos se desesperam, impotentes. Pessoas morrem em casa, no chão do hospital, não há leitor nem aparelhos suficientes... e vai piorar. Simbólica a foto de um homem morto no chão de ladrilhos de um hospital, braços abertos feito um crucificado: ao lado, sentada, a enfermeira que não o conseguiu salvar – atroz imagem da desolação – e isso tudo corre mundo.
Como viver assim, como trabalhar, como se relacionar em paz até consigo mesmo?
Então lembro da importância de um lugar quase secreto, sagrado, tranquilo, que não precisa ser fantasioso mas real: o que chamo o jardim da amizade. Relembro as amizades importantes de minha vida, sem crises de ciúmes, sem muita cobrança nem pressão, a não ser, aqui e ali, um “ei, me dá notícias porque me preocupo”. A paz de poder andar lado a lado, de mãos dadas ou não, como crianças inocentes ou não, falando, silenciando, escutando, dando ombro e colo para quem se aflige até mais do que nós diante da duríssima realidade atual.
Crianças doces, adolescentes ousados, adultos concentrados, gestos inocentes ou nem tanto, é neste lugar precioso, que nem todos sequer conhecem, o das amizades fraternas ou amorosas, que podemos nos recuperar um pouco, falar, escutar, contemplar, achar forças para continuar a vida cotidiana tão desregulada, onde não podemos receber em casa pessoas amadas, nem ir aos lugares que eram os nossos, nem agir com naturalidade, mas usar máscara, medir a distância segura, e de preferência ficar em casa onde estou há um ano... ou largar tudo e viver como se fossem tempos normais, e nos contaminar, e contaminar os outros, e aumentar mais esse largo rio de desgraças que inunda o planeta, o país, a cidade, a rua aqui em frente.
Um amigo afetuoso, leal, que deseja e sabe fazer as trocas afetivas necessárias, é um tesouro especial. E pode ser do outro lado do whats, e-mail ou celular – o mundo cibernético servindo de jardim sossegado para aliviar a alma.