Casas, nuvens, mar: três temas frequentes nas minhas telas. Onde se vê que sou apenas uma escritora que às vezes pinta: me agrada a surpresa das cores quando as misturo ou simplesmente boto o pincel numa e noutra, para ver o que dá.
Como na literatura, não sou exemplo para jovens que comecem a pintar... ou a escrever. Pouca disciplina, muito prazer, arte como contraponto ao tédio. Também com Lou Borghetti, cuja perda prematura ainda me dói, fui péssima aluna: queria pintar minhas fantasias, e receber dela as sábias orientações sobre “quem sabe mais luz aqui”, “talvez mais um tom ali”, e fim. Ela, como eu, se divertia com isso, e a primeira coisa que disse em nossa primeira aula foi: “Senhora escritora, pincel não se segura como se fosse caneta”, e rimos juntas. A amizade, especial, estava selada.
Mas hoje quero escrever sobre o sobrado de meus avós maternos, na minha cidade natal, com aromas, climas, imagens cheias de segredos e sustos para a menininha que fui, embora para seus moradores fosse simplesmente “a casa”.
No térreo, junto da calçada, três degraus de pedra e a porta que me parecia imensa, como a maior parte das coisas parece para uma menina pequena. Durante o dia, estava quase sempre aberta, pois à esquerda ficava o tabelionato de meu avô, antes dele um vestíbulo pequeno, tendo no chão os mais belos ladrilhos que jamais vi. Não saberia descrevê-los direito, nem reproduzir em pintura, mas em sonhos os vejo nítidos, tons verdes, castanhos, quase brancos, algo laranja no meio?
À direita, entrava-se direto na casa, a saleta do piano, a sala de jantar e estar, a copa, a cozinha e, descendo uma escadinha de pedra, o jardim. Antes, porém, o Rumpelkammer, acho que seria quarto de despejo. Havia ali tudo o que se encontraria num bom velho sótão.
Depois do tabelionato, com seus cheiros de papel e tinta, às vezes cigarro, à esquerda subia a escada de madeira, ampla, levando ao segundo andar, com lugares incríveis: por exemplo, o quarto que tinha sido de minha mãe, onde eu a imaginava menina, alegre, jogando bola de gude com os irmãos na calçada, e com uma imensa cabeleira – depois cortada porque o médico de família achava que parte da energia da magricela ia para os cabelos. Junto do quarto de minha avó, um terraço grande com uma larga balaustrada de concreto, onde ela me acomodava numa almofada, perninhas balançando sobre o vazio, eu bem segura pela cintura, avistando os morros azuis que rodeavam a cidade.
Logo embaixo, o jardim onde ela cultivava flores, orquídeas, uma pequena parreira com as mais doces uvas, todos os canteiros com beiradas de morangos. Na época das frutas, ela me dava uma cestinha e eu podia colher os mais vermelhos, me sentindo muito importante.
Outro dia assisti a uma palestra sobre felicidade, que, eu acho, é feita de momentos especiais. Ali, naquela casa, lembro intensa felicidade, euforia, expectativa e curiosidade com todos os segredos que – para mim, não para seus moradores – ela guardava. Hoje, o casarão foi derrubado, com um edifício em seu lugar. Nunca mais passei naquela rua quando fui à minha cidade, nunca mais tentei saber como se parecia, agora, a casa mais especial da menininha que fui.