Sempre me impressiona a insistência (certamente feita com a maior boa vontade) com alguém que chora a perda de marido, filho, pai, irmão: “Reage! Não chora!”.
Ora, como? Como não chorar a perda trágica e irreversível de alguém muito amado? Penso que é preciso chorar, sim, não só porque é natural, mas porque faz parte dos rituais humanos que brotam do fundo da psique, agir com relação a uma dor tão grande, para aos poucos conseguir acomodá-la no peito de algum modo. E dizemos para nos consolar, “com o tempo há de doer menos”.
Meus olhos ainda ficam marejados tentando assimilar, por exemplo, a perda de minha amiga Lou Borghetti, morta na plenitude de sua vida e de sua arte, assim como choro por um amigo amado, fraterno, que há um mês sofre entubado num hospital do Rio, vítima do corona. E pela perda de um filho há dois anos e meio – ou foi ontem? Pelas perdas, quero o direito de chorar.
Tenho refletido sobre o trabalho de Borghetti, antes divagado, pois não tenho cacife para bancar a crítica de arte. Penso no que me fascina em suas telas. Cores, cores, cores. Vermelhos ou azuis, mais vezes vermelhos. Sombras muito escuras espreitando ou invadindo. Insinuações de casas, de figurinhas humanas, árvores, montanhas, aqui e ali ouro resplendendo como respingos de sol.
Tudo como eu gosto e procuro na minha literatura: mais sugestões do que definições. O estilo Lou Borghetti. A arte deve ser o território maior da nossa liberdade: a mim agradam a mescla de intensidade e máxima delicadeza, insanidade e lucidez, alusões, rabiscos, pinceladas largas e generosas, ou espaços de silêncio entre palavras. Nas telas de Lou há sinais secretos, que comentei com ela mais de uma vez. Um deles é uma escadinha precária subindo para o nada, que usei em um de meus livros mais recentes, A Casa Inventada, e disse a Lou que tinha “roubado” essa imagem dela. A minha escada se perdia no nevoeiro da morte. Minha personagem começava a subir, mas desistia e voltava para a vida.
A amizade de Lou Borghetti e aquelas horas no seu ateliê me faziam bem. Ela naquele seu esplendor de vitalidade, eu já aquietada pelos anos, meio sem graça por minhas limitações com tintas e pincéis. Nos últimos tempos, ela já doente, introduziu o tema morte mais vezes nesses diálogos, com naturalidade dizia que nós duas a tínhamos encarado olho no olho, eu recém-enfartada, ela lutando com sua enfermidade. Ela havia algum tempo tinha perdido a mãe, eu, um filho: a amizade era solidária também nisso.
Então traduzo aqui versos esparsos do poema da americana Edna St. Vincent Millay, Elegia sem Música, que andei relendo:
Não me conformo com trancarem corações amorosos na terra dura. É assim, e assim foi desde o começo dos tempos(...): entram na treva, os fortes e os adoráveis.(...). Amantes e pensadores, postos na terra. Docemente lá se vão para a escuridão da tumba. Vão alimentar as rosas. A flor é elegante e sinuosa. A flor é perfumada. Eu sei. Mas não aprovo. Mais preciosa era a luz de teus olhos, do que todas as rosas do mundo. E eu não estou conformada.
Às vezes é preciso chorar. Não me peçam o contrário.