A vida precisa de uma porta para espiar o que há dentro: um corredor, o espelho e suas criaturas, a sala da família e um claro quarto de criança; um porão de aflições que soluçam à noite (mas dizemos: é o vento); o pátio, simples, e o pequeno jardim com três árvores esguias que afinal são um bosque.
Num resto de muro, a escada de madeira que parece não levar a nada. (Pousado no último degrau, um pássaro de sombra nos observa: seu bico é curvo e afiado.)
O meu é o reino das palavras: aqui tudo pode ser dito – a cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios. Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros sem ler, sacodem a cabeça – e não entenderão. Porque eu falo para os da minha raça: os que além de racionais são também ilógicos, os bem-estabelecidos que amam o imprevisível, os que na margem concreta enxergam mais do que isso e não têm com quem o partilhar.
Será a Vida, ou é a Morte, apenas, que reclama?
Por isso atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, ou simplesmente vagam alertas pela sua casa quando os outros ancoraram no sono. Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida – esta que escreve não sou eu, mas algo que transborda dos meus contornos como o mar transbordava de uma concha naquela mão, na infância dourada.
E minha alma, esse cavalo alado, inocente menina ou feiticeira perversa, fará deste novelo de caos e luz o seu porto de partida, num sopro desenrolando infinitamente o nome que é todos os nomes e é minha alegria.
Alguém joga xadrez com minha vida, alguém me borda do avesso, alguém maneja os cordéis. Mordo devagar o fruto da minha inquietação. Alguém me inventa e desinventa como quer: talvez seja esta a minha condição. Bastaria um momento de silêncio para eu ser feliz: mas do fundo do palco uma voz me chama.
Será a Vida, ou é a Morte, apenas, que reclama?
Nada entendo de signos: se digo flor é flor, se digo água é água. (Mas pode ser disfarce de um segredo.) Se não podem sentir, não torçam a árvore-de-coral do meu silêncio: deixem que eu represente meu papel. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da interpretação: se não me podem amar, esqueçam-me.
Com as perdas só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação. Mais nada. A vida corre à frente dos relógios.
O ritmo das águas indica o roteiro e me oferece um papel: o coração como uma vela ao vento, ou pagar até o fim as contas já vencidas.
Abro a gaveta e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, retorce-se no labirinto das ambiguidades.
Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer. Mas ela inventa o que faço: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta, belo enigma. Eu, mediação incompetente.
Estes são os meus objetos. Este é o meu rosto: uns olhos que, de procurar demais, olham só para dentro. E se tudo desemboca na morte, esse é o meu destino. É para lá que vou, esperança e protesto, segurando o candelabro dos amores que me iluminaram na vida.
(Resistirão, singularmente, ao meu último sopro?)