Lya Luft

Lya Luft

Cronista, romancista, tradutora e autora do best-seller "Perdas & Ganhos", Lya Luft escreveu semanalmente em ZH. Natural de Santa Cruz do Sul, Lya faleceu em Porto Alegre, em 30 de dezembro de 2021. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano

Otimismo ou pessimismo

Hoje não estou nem poética, nem agradável, mas cansada, furiosa 

Lya Luft

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Café da manhã, marido e mulher juntos, com o péssimo hábito de ver notícias.

De vez em quando, um de nós se propõe a não ligar mais, tentar se alienar, muito mais saudável.

Infelizmente não dá: somos habitantes deste planeta, as dores de todos são de todos de alguma maneira, a não ser que a gente seja da turma dos fúteis e desligados. E isso não se escolhe: a gente é, por nascimento e formação.

A mim me dói a menina estuprada, engravidada, posta sob a luz de holofotes irresponsáveis e tendo de fugir da sua cidade, amigas, família, para preservar alguma identidade.

As dores de todos são de todos de alguma maneira

A mim me machuca a dor de cada morador da Beirute que nunca visitei; a tristeza de cada neozelandês que vê desfeito o sonho de corona nunca mais.

A mim me aflige a ansiedade de cada aluno e pai de escolas e faculdades americanas que já reabriram suas salas e agora têm centenas de alunos, professores e funcionários contaminados ou em quarentena.

A mim me entristece e preocupa o Brasil, onde quase celebramos que um dia em vez de 1,2 mil mortos temos apenas 980.

Talvez eu tenha dificuldade com a realidade: faz parte um pouco do folclore sobre escritores, poetas, artistas em geral.

ENGANO: sofrer com as realidades do mundo dos outros, das pessoas próximas, não é fantasia de artista: é a realidade que morde nosso calcanhar e sangra nosso coração.

Sim, parece que mortes pelo corona estão diminuindo um pouco por aqui. Aconteceu em países da Europa, na Nova Zelândia, na Austrália e em outros... apenas para tudo piorar quando se liberaram de novo as aulas, os bares, as praias, as lojas.

Não me considero sombria nem pessimista, mas me pergunto insistentemente: o que devemos fazer? 

Como proceder? Como escapar dos gurus, dos profetas, dos céticos ou dos irresponsáveis alegrinhos?

Não sei. Receio que ninguém saiba. Temo que a Peste do século 21 vai se desgastar por si, cansada de devorar humanos de todas as idades, de afastar grupos e famílias, de interromper carreiras e projetos, enfim fatigada com nossa incompetência, leviandade, fraqueza, falta de comando e seriedade... e, mesmo onde isso existiu, entediada com sua própria terrível força, imprevisibilidade e manobras sinistras.

Sim, hoje não estou nem poética, nem agradável, mas cansada, furiosa com tanto palavrório falso e danoso, quando milhares de pessoas ainda adoecem, muitas morrem, centenas de brilhantes cientistas do mundo inteiro se esforçam de maneira quase sobre-humana, médicos e enfermeiras se sacrificam e adoecem, enquanto uma parte de nós, pobre humanidade, pensa em festa, praia, passeio, reunião com a turma e viagens.

Desculpem, hoje não estou achando graça de muita coisa, exceto talvez da neve e da geada que recobrem e embelezam os gramados do meu Bosque em Gramado, onde escolhi não estar neste frio extremo: o vírus tem alguma autoridade sobre esta eterna rebelde: eu escolho a vida, se puder. Minha circunstância me pede isso.

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