Quando a gente vê o tempo escoou, escorreu, em sua lenta procissão rumo ao infinito. (A imagem não é minha, mas do Nelson Rodrigues, quando escrevia suas confissões – ele tinha a provecta idade de... menos de 60 anos quando escreveu isso.) E quase tudo vai ficando no esquecimento, até mesmo preciosos itens materiais, guardados com tanto cuidado, tanta fé, tanta ilusão.
Mas mesmo em quem vai perdendo a memória de fatos, nomes, cheiros, permanece viva a memória musical. Li alguma vez que as memórias musicais ficam em outra região do cérebro. Aos 64 anos, já tive a oportunidade de constatar essa permanência, ao vivo. Pessoa muito próxima foi acometida pelo Alzheimer, não lembrava nem mais os nomes de parentes íntimos; mas apresentado a canções de décadas antes ele reagia até cantarolando, na melodia certa.
Nem precisava de toda essa volta para elogiar a excepcional criação que é Porto Alegre – Uma Biografia Musical, de Arthur de Faria, obra cuja primeira parte saiu agora, em uma edição perfeita pela editora Arquipélago. Esses dias, aliás, o Vitor Ramil fez ao livro um elogio inexcedível, aqui mesmo em GZH; mesmo assim, deixo aqui meu testemunho, de quem acompanhou passo a passo a produção do material do livro, que saiu esparsamente na revista digital Parêntese, e de quem é amigo do autor há décadas, sempre com grande gosto e incontáveis oportunidades de aprendizado.
Ocorre que o Arthur, que é compositor, musicista, arranjador, band-leader de inacreditável criatividade e um curioso insaciável, aliou a essas marcas mais duas de igual valor no caso – escreve muito, mas muito bem, com precisão e suingue, e tem uma perspectiva historiadora que poucos têm: mantém em vista o conjunto mas mergulha sempre em rasante para ver de perto cada um dos itens.
O resultado é um livro que se lê com deleite, porque as informações vêm limpinhas e vivas para a superfície do texto, e não como borboletas mortas espetadas naqueles quadros antigos. Ilustrado com documentos e imagens abundantes e próprias, essa biografia musical nos devolve inteiras e contextualizadas muitas cenas e figuras que nunca saíram da memória da cidade, embora tantas vezes restassem truncadas e borradas.
Só consigo terminar, à moda do já citado Nelson Rodrigues, exclamando, sem qualquer imparcialidade: que serviço o Arthur presta para Porto Alegre!
PS: e o livro terá uma sessão de autógrafos nesta terça-feira (4), a partir das 18h, na PocketStore (Félix da Cunha, 1.167).