O assunto é uma armadilha, mas vamos lá. Trata-se de um debate muito presente na literatura, que lê textos do passado e, encontrando neles valores e modos de ser não mais aceitos agora, trata de arguir esses textos. O leitor vai lembrar o caso de Monteiro Lobato, tratando da tia Nastácia como “macaca de carvão”.
Que seja uma ofensa às pessoas negras, é certo; o que não é claro é o que fazer a partir dessa constatação. Editar os textos, suprimindo as passagens racistas? Deixar como está, colocando uma advertência preliminar ao leitor? Marcar o problema em nota de pé de página? Nunca mais editar nem deixar ler, cancelando o livro e talvez o autor? Como dá pra ver, o leque de alternativas é amplo. E logo vêm à mente casos análogos, como, exemplarmente, muitas passagens da Bíblia, abertamente sexistas, racistas, etc.
Vamos a dois casos recentes. Ano passado saiu uma reedição dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, cuja edição original é de 1912 e 1913. A reedição, pela editora Fugitivo Literário, de Pelotas, não tem cuidados adequados para com o texto em geral (que de si já apresenta vários problemas, que precisariam ser enfrentados com maior acurácia) e oferece uma nota inicial que dá o que pensar: “Estas obras incluem representações negativas e de cunho preconceituoso, infringindo os direitos humanos de determinados grupos e culturas. Estes estereótipos estavam incorretos na época em que as obras foram escritas, e continuam incorretos”.
Estavam incorretos na época? Certamente não. O autor dessa nota, não assinada, comete um equívoco de proporções, na boa intenção de alertar para a violência contra a mulher e para o racismo. Já Beatriz Pereira, que assina o prefácio, nota que na obra “as mulheres são donas de seu destino”. Na pior hipótese, então, o livro tem também valores avançados para a época. Como balançar entre o incorreto e o correto, segundo o nosso presente?
Recorro a uma saída inteligente, que encontrei na nota final ao romance A Cabeça do Pai, de Denise Sant’Anna (editora Todavia), por sinal historiadora de ofício. Diz: “Os personagens deste romance falam, agem e pensam de acordo com as suas épocas e dentro de seus limites culturais. Seria anacrônico e artificial literariamente adaptar as suas falas ao modo como atualmente aprendemos ser correto e justo”.