Não tem jeito de eu ler esse título sem lembrar da voz e da dicção do Luciano Alabarse. Gente de teatro, como ele, é uma gente especial. Especial e imprescindível. Não vive este mundo do mesmo jeito que nós. Eles têm a noção exata da performance: este mundo é um palco, e se trata de entender e participar da coisa toda. Por não serem como nós, eles jogam sobre a vida comum uma luz inesperada, que ajuda a jogar o jogo — para manter a sanidade ou para perdê-la.
(Muitas pessoas assim têm dificuldade de conviver com a consciência dessa multiplicidade, que envolve hipocrisia, medo, ousadia, conveniência, raros encontros verdadeiros, breves epifanias, desespero, melancolia, em doses e sequência muitas vezes demoníacas.)
Nunca Pensei em Ser Atriz é o nome do livro da Suzana Saldanha (editora Ardotempo). Mas a Suzana é atriz, desde a juventude. Aí ela produz esse livro e vem com este título, que faz pensar: "nunca" é quando? Até os 18 anos, quando entrou para o curso de Arte Dramática da UFRGS? Ou até agora, em 2022, quando saiu o livro? "Nunca pensei" pode ser entendido então como "sempre fui atriz, embora nunca tenha parado para pensar claramente sobre ser atriz".
O livro é uma agregação, uma assembleia permanente. Tem um prefácio do José Ronaldo Faleiro, que oferece já informações biográficas da Suzana, de experiências compartilhadas, no Brasil e na França. Tem outro texto do Abrão Slavutzky, outro da Haydée Porto, mais um da Ana Cláudia Munari, e ainda outro do Antonio Hohlfeldt. Também bilhetes e mensagens de uma penca de gente. E mais fotos. Ah, ia esquecendo: tem também um texto longo da própria Suzana.
Mas espera aí: o livro é da Suzana ou é sobre a Suzana?
Aí é que tá. O nome do texto dela mesma, um breve recorrido de lembranças de sua vida, tem como título o nome de um espetáculo escrito e protagonizado por ela em 2015: Eu é nós. Como se fosse um plural derivado da frase-tese de Rimbaud, a famosa Je est un autre, "Eu é um outro".
O livro tem uma precariedade viva, em seu aspecto compósito, gregário, multitudinário. É um lindo livro de memórias (que podia ter recebido uma revisão mais rigorosa, mas isso é outro papo) talvez justamente por ter essa força fraca, essa aberta confissão de parceria.
Sim, eu fiquei querendo mais detalhes, mais explicitação, perfis de envolvidos, coisas que as memórias nos sugerem sempre, ao nos oferecer a chance de viver, parcial e vicariamente, uma outra vida, mediante a leitura.