Quando comecei a ler O Uraguai, o estranho e primoroso livro de Basílio da Gama (primeira edição em 1769), os esforços de decifração foram muitos. É um poema narrativo, com alguns traços de épico, concebido para louvar a ação do Marquês do Pombal na colônia brasileira mas que, no meio do caminho, topa com um problema maiúsculo: entre os personagens malditos, os jesuítas, e os benditos, os militares portugueses, estavam os índios da Missões. Basílio, talvez por intuição de artista mais do que por clareza ideológica, deu a palavra a alguns deles. Falam no livro Sepé Tiaraju, Cacambo e outros. E falam para arguir a lógica imperial portuguesa.
A folhas tantas diz o narrador que lavradores deixavam o arado na terra para acompanhar o exército, para ganhar dinheiro – os combatentes não tinham em regra carreira regular no exército. O que eu não entendi e até não aceitava era que houvesse lavradores que abandonavam a terra para ganhar dinheiro na guerra. Minha cabeça estava formada por uma interpretação do Brasil feita por Caio Prado Júnior, para quem só existiam senhores de escravo e escravos, com uma ínfima porção de homens livres pobres. Ora, aqueles lavradores seriam homens livres, que escolhiam ir para a guerra, e não seriam tão poucos como pensava Caio Prado.
Cem anos depois, José Hernández publicou Martín Fierro (1872-79), em que o assunto volta, mas na forma oposta: o narrador, um gaúcho livre, conta que foi levado à força pelo exército para combater índios. Odiou cada minuto desse empenho.
Há pouco conheci Crescimento Demográfico e Evolução Agrária Paulista (1700-1836), de Maria Luiza Marcílio. Grande e pouco valorizado livro, estuda a dinâmica populacional no período, com documentação sólida. E ali se lê que, em 1776, um governador escreveu ao Conselho Ultramarino, em Lisboa, para se queixar que os homens do sertão (quer dizer, de tudo que não era litoral) “são sumamente fujões, e bem difíceis de recrutar”.
Sigo querendo entender o tema com mais nitidez. Basílio estava fantasiando? Hernández foi realista? Ou este governador estava exagerando?