Dedicado a meu pai, Bruno, que nesta terça-feira completará 88 anos
Minha existência como ser pensante, a formação da minha sensibilidade adulta, como alguém atento ao mundo, é simplesmente impensável sem Aldir Blanc. Eu posso me imaginar talvez sem ter conhecido os Beatles e Simon & Garfunkel e Caetano e Chico e Paulinho da Viola (brincadeira, não posso não), mas sem o Aldir de jeito nenhum. Especialmente em sua trajetória como parceiro de João Bosco, quando, por duas décadas, anos 70 e 80, simplesmente me ofereceu toda uma interpretação do país em sua maior profundidade, em sua estrutura de sentimento.
Sua ousadia na recuperação da história: “Salve o Almirante Negro / que tem por monumento / as pedras pisadas do cais”, escreveu ele em homenagem a um dos tantos verdadeiros heróis brasileiros. Era uma lembrança de João Cândido, um negro valente, gaúcho de origem, que liderou a justíssima Revolta da Chibata. (A censura proibiu o “almirante”, que era seu apelido, e Aldir colocou ali “navegante”. Mas nós sabemos que era de fato almirante.)
Suas comparações brutas: “Caía a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto / me lembrou Carlitos”. O viaduto de fato caiu, era o Paulo de Frontin, no Rio. Caiu abruptamente como cai a tarde no Rio – nós, os sulistas, não conhecemos esse fenômeno, porque aqui as tardes têm a gentileza de se despedirem devagar, dando tempo ao luto diário. Era Aldir emprestando sua verve para homenagear os mortos da ditadura militar, essa mesma que o atual ocupante do Planalto celebra em sua pior face, a da tortura.
Sua celebração da paixão: “Nos dissemos / que o começo é sempre, sempre inesquecível”. Sua picardia: “E a ponta de um torturante bandeide no calcanhar”. Sua ironia, seu deboche. Sua melancolia. Seu suburbanismo. Seu sopro épico. Sua irresignação. Seu alinhamento com as causas certas.
Talvez nada supere, na minha alma, o espanto de admiração que tive por ele quando soube, naquela escassez de informação dos anos 70, que ele tinha abandonado a profissão médica (era psiquiatra) para se dedicar à música e à literatura, em contos e crônicas. Um gênio, incompatível com essa mixórdia bozozóica.
Valeu, meu. Te devo muito, Aldir. Descansa aí.