Gota d’água no deserto, raio em céu azul, o sobrevivente ministro Mandetta mencionou na segunda-feira (6), com todas as letras, a alegoria da caverna, história apresentada por Platão no livro VII da República. Seria trivial na boca de FHC ou Dilma ou Temer, pessoas letradas de distintas configurações políticas, mas não é pouca coisa para um governo tão inimigo da tradição culta e tão satisfeitamente mergulhado em ignorância e empenhado em combater o conhecimento acadêmico.
A história escrita tem uns 2,4 mil anos e merece ser retomada. Está lá, num diálogo, que é a forma expositiva do livro todo, o professor Sócrates conversando com alunos e levando-os a pensar.
Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz. Estão algemados de tal maneira que só podem olhar na direção do fundo da caverna, onde enxergam imagens que são, sabemos nós, apenas sombras de objetos e eventos que estão fora da caverna, e que são projetados lá por efeito da luz forte de um fogo, que queima cá fora.
Imagina, segue o professor Sócrates retratado por Platão, o que aconteceria se um homem conseguisse sair dessa posição e olhasse para o lado da luz. Ficaria cego num primeiro momento, mas depois entenderia que tudo que tinha visto até ali era apenas sombra, porque a origem das imagens estava do lado de fora da caverna. Teria descoberto algo mais verdadeiro.
E imagina mais ainda, desafia: o que aconteceria na cabeça deste que saiu? O que ele pensaria dos que lá tinham ficado?
E se ele, finalmente, resolvesse voltar para dentro da caverna e anunciar o que tinha descoberto – ririam dele? Se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
Em uma só imagem, Mandetta se colocou na posição de quem conhece a luz, a ciência, o pensamento crítico, e empurrou seus oponentes para o fundo de uma caverna escura, em que restam acorrentados sem querer ver a luz que lhes foi oferecida.
Na narrativa de Platão – pessoalmente tenho muita reserva com seu pensamento antiempirista, mas não se trata disso aqui – , o sujeito que sai e volta é o filósofo, o que aceita o risco de ir em busca do conhecimento, mesmo que por vezes tenha que ficar cego: ele se alimenta da certeza de que, logo além dos primeiros embaraços, residem certezas melhores que as anteriores.
O filósofo de nosso tempo é o cientista, a comunidade científica. Ele e ela duvidam metodicamente das aparências, se afastam das ligeirezas e dos improvisos, para poder chegar a certezas mais sólidas. Mas correm riscos, ainda mais quando os ouvintes têm poder de calar sua voz.