Não sei se o prezado leitor viu a notícia do El País sobre a multa que a tevê Record levou há pouco. Dois milhões de reais. Motivo: 10 anos atrás, quando era gravada a telenovela Rei David, a cenografia pintou com tinta branca uns grafismos, numa caverna de Diamantina, norte de Minas Gerais.
"Pintou uns grafismos" quer dizer assim: um artista contratado pela emissora, encarregado de montar os cenários, olhou aquela parede de caverna e pensou: "Aqui vai ser bom de gravar a história do rei David. Mas tem umas coisinhas ali na parede que não têm nada a ver". E deliberou: "Já sei, vou passar uma tinta por cima". Capaz de ter acrescentado a frase agora popular, inclusive na boca de um general importante do governo federal, equivalente popular para "Dane-se".
O lugar é um dos vários sítios arqueológicos da região, que tem comprovada presença humana há uns 11 mil anos. O grafismo em questão, diz a matéria, estima-se para 4 mil anos.
Quatro mil anos, na conta ocidental, quer dizer 2 mil antes de Cristo. Quer dizer: pouco depois das famosas pirâmides do Egito, pouco antes de Abraão ser, estima-se, chamado por Deus para Canaã e de alguém produzir a primeira versão da Epopeia de Gilgamesh, na Mesopotâmia. Uns 10 séculos antes da dinastia do David real aludido na novela. Mil e tantos anos antes das mais remotas partes da Bíblia e das epopeias de Homero.
Neste tempo inimaginavelmente distante, um camarada da futura Diamantina estava rabiscando coisas numa parede. O que aquele sujeito queria comunicar? Uma vivência? Uma angústia? Uma piada? Um recado? Uma dívida?
O que me espanta mais é que deve ter sido alguém com alguma escolaridade, talvez um curso superior. Um profissional da arte. Que não aprendeu uma coisa tão elementar como a de respeitar o passado. Dois milhões pagam o quê? Apagam o quê?
A Record está recorrendo da multa.