“Pai, o que que é surra?”
A pergunta veio assim, sem preliminares. Era a minha filha de nove anos, a Dora, e nós estávamos voltando, de carro, do colégio para casa. Houve um segundo ou dois de espanto meu, até que comecei a responder.
Não lembro direito como foi o caminho que escolhi, porque na frente de tudo estava e está ainda uma pequena vertigem pela mera pergunta. Por um lado, espanto de alegria: como ela nunca apanhou, nem viu perto de si algo que se chama surra, nunca precisou da palavra.
Eu também nunca apanhei — na verdade, uma única vez tomei umas palmadas do pai, num momento que, entendi claramente depois de adulto, ele é que estava desesperado, portanto fora de seu habitual, que é doce e colaborativo. Tanto que tomei as palmadas (eu teria uns seis anos) e em seguida vi, com vertigem diferente, que ele começou a chorar e a se desculpar, me abraçando, ele sentado na cama, eu de pé diante dele.
Quer dizer: eu também sou filho de educação não-violenta. Na minha geração ainda muita gente apanhava, com palmada, chinelo e até cinta. E hoje?
Nas classes confortáveis e esclarecidas (e amorosas), creio que é forte exceção a surra física, mas nas classes desconfortáveis a regra é bem outra. Mesmo sem lidar com o cotidiano de gente pobre e/ou desatinada, ouço alarmado amigos e colegas professores falarem sobre a violência continuada. Ciclos intermináveis de brutalidade, social, psicológica, física, sobre adultos e crianças e velhos. Ciclos que a atualidade política reforça todo dia.
A Dodó queria saber da palavra porque, mais uma maravilha, está lendo Tom Sawyer, e lá aparece menino apanhando. Menino de mais de 150 anos atrás, vivendo algum desses duros processos de amadurecimento. Que não precisa ser, ainda por cima, fisicamente violento.