Ah, quem nunca sonhou em viver na segurança total, com as crias brincando em ruas sem movimento, sem caminhão passando, sem pobres à vista para enfeiar a paisagem? Ah, nós, que trabalhamos tanto, merecemos esse conforto!
(Muitos não trabalham porque não querem, essa é que é a realidade. Se quisessem, teriam emprego. Humilde, mas emprego. Depois, com o tempo, as coisas se ajeitariam. Mas não, ficam querendo tudo ao mesmo tempo, comida, roupa, teto, água, esgoto, escola pras crianças, hospital. Aí não dá, né? Paciência. Essa é que é a verdade.)
Bem, um pouco é uma caricatura isso aí de cima; mas outro pouco não. Há muita gente que pensa assim – e por pensar assim chegou à conclusão de que só há uma saída para a gente como a gente: viver num bunker, num condomínio fechado, com os pobres convenientemente barrados na portaria.
Os pobres, mas também os pardos e os pretos. (A pessoa que diz ou pensa as frases dos primeiros dois parágrafos tende a igualar as duas coisas, a condição social baixa e a cor escura da pele.)
É com esses elementos, ao mesmo tempo tão triviais e tão estruturantes de nossa realidade imediata, que Taiasmin Ohnmacht compõe uma novela curta de grande interesse, Visite o Decorado (editora Figura de Linguagem).
Os protagonistas formam um casal de classe média, ela comerciante de lingerie com loja alugada no próprio condomínio, ele inconformado com uma câmera de segurança do condomínio que o flagra dentro de seu próprio quarto. Um casal que alcançou o sonho da casa dentro de muros altos.
Não demora nada para que vizinhas pudicas encrenquem com a loja, e para que o esquema de segurança complique com a entrada de alguns parentes de outra vizinha, casualmente gente de pele escura.
Narrado com grande economia de meios e boa agilidade (mas carecendo de uma revisão mais detida), Visite o Decorado conduz discretamente os fatos do enredo mas dá notícia explícita da exclusão social (envolvendo racismo) que não apenas existe, como é tomada como ideal de vida por muitos, em desfavor da civilização, da democracia, da cidade republicana.