Reli agora, para um debate, o romance Submissão, de Michel Houellebecq. Saído no começo de 2015, o livro seria lançado em Paris na tarde do dia em que houve o terrível atentado ao jornal Charlie Hebdo, um semanário satírico tradicional da França. (Os autógrafos foram suspensos.) Os irmãos Kouachi, armados de metralhadoras, invadiram a redação, assassinaram 11 pessoas e feriram outras quatro, alegando estarem vingando o profeta Maomé.
Quem era a figura caricaturada na capa da edição daquele dia? O próprio Michel Houellebecq. E o que significa a palavra árabe “islã”? “Submissão” (a Alá).
Qual o assunto do romance Submissão? A história de um professor de literatura francesa, especialista no final século 19, que se converte ao islamismo, no contexto da hipotética eleição à presidência da França, em 2022, de um partido chamado Fraternidade Muçulmana.
A partir dessa eleição, a França começa a mudar: acaba o desemprego, porque as mulheres param de trabalhar fora de casa; sobra dinheiro na educação, porque fundos de petroeuros árabes bancam a Sorbonne e outras universidades; o ensino deixa de ser obrigatório depois dos 10 anos de idade, ao contrário do limite mínimo dos 16 anos atuais; homens com posses podem ter mais de uma esposa. E o ensino superior, especialmente nas letras e humanidades, passa a ser submetido a critérios muçulmanos.
Quando conheci o livro, estava na França, o que me fez sentir muito vivamente o horror infundido pelo terrorismo e, mais difusamente, as ameaças contra a liberdade, a tolerância, a cooperação, a emancipação feminina, o respeito à diferença, traços que marcam o Ocidente em sua melhor face.
Agora, na releitura, o contexto é outro: não se trata mais de temer uma coisa para nós ainda remota como o terrorismo de matriz religiosa (toc, toc, toc), mas de conhecer ameaças reais à melhor herança ocidental, o Iluminismo, o apreço pela arte, pela liberdade de pensamento, pela ciência.
O livro é muito hábil em induzir o leitor a experimentar esses medos. Com um manejo excelente dos tempos da narrativa – o cotidiano e a carreira intelectual do professor, em cotejo com a ascensão da dita Fraternidade e do que é visto como o fim da Cristandade e a configuração de uma Eurábia –, o processo narrativo dá voz a um sujeito indiferente, ausente, cínico, um individualista extremo a quem tanto faz o destino geral da sociedade.
Alguma coisa de parecido com nossa apavorante atualidade?