O guri do bairro Auxiliadora virou o "Rei do México". André Jardine, 44 anos, levou o América ao bicampeonato da Liga MX, algo que não acontecia há 25 anos. No Apertura, ele já havia tirado o time da fila de cinco anos sem títulos. O América divide com o Chivas o posto de clube mais popular do país. Tanto que os dois protagonizam o maior clássico mexicano.
André chegou ao clube na metade de 2023, depois de uma temporada de sucesso no Atlético San Luís, a filial asteca do Atlético de Madrid. Fez ajustes, recolocou o América na trilha dos títulos e o isolou como maior campeão do país, com 15 conquistas (até sua chegada, o placar era 13 contra 12 do Chivas).
Tudo isso faz do técnico uma celebridade mexicana. Tanto que seu nome é cotado para assumir a seleção e estar no comando de uma das anfitriãs na Copa do Mundo 2026. Uma campanha ruim na Copa América pode custar o cargo do técnico Jayme Lozano.
Por telefone, na última semana, enquanto curtia as férias em Jurerê, André conversou com o colunista. Falou da vida no México, do futuro, do sucesso da MLS e da necessidade de técnicos brasileiros ganharem o mundo. Confira abaixo:
Qual a sensação de fazer um clube que tem a maior torcida do país sair da fila de títulos e bater recordes?
Está sendo bem legal, baita experiência de vida. No aspecto profissional, também é impagável, um clube gigante, com uma torcida impressionante. Por onde vamos, é sempre aeroporto cheio, hotel cheio. Dirigir um clube de massa assim é uma superexperiência. Está saindo tudo bem. Na verdade, não tinha como sair melhor. Primeiro ano com chave de ouro. Conseguimos dar o empurrão do qual o time precisava, desenvolvendo a equipe.
O que você encontrou lá quando chegou?
O América tinha uma equipe muito boa, vinha fazendo bons campeonatos, mas não conseguia ganhá-los. Consegui identificar o que faltava, melhorar algumas coisas. Era preciso ajustes para entrar nesse caminho e tentar ser campeão.
Bom, dois títulos seguidos, algo inédito há 35 anos. Podemos dizer que teu moral está alto com os torcedores?
O clube é muito forte e causa os efeitos que todo o clube de massa causa. Quando se consegue as conquistas de títulos e desse tamanho e envergadura, a imprensa e a torcida exaltam. A capacidade desses clubes de te transformar em ídolo ou te matar é muito rápida (risos). Tudo tem velocidade muito grande. Conseguimos ganhar, tirar o América da fila. Estamos, assim, vivendo um clima perfeito, clube, torcida e imprensa.
Consegue sair tranquilo na Cidade do México depois desses 12 meses de sucesso?
Consigo, mas é tirando foto o tempo todo, atendendo às pessoas, tentando ser gentil com todos. O assédio é grande. Hoje, dificilmente, consigo sair na rua e não parar a cada minuto para uma foto ou autógrafo. É preciso entender, ter paciência, a galera quer contato. Metade da população mexicana é torcedora do América. Assim, aonde vamos, sempre tem torcedor do clube.
Como é ser campeão no Estádio Azteca, um dos templos do futebol, cenário de jornadas históricas de Pelé e Maradona?
Foi uma emoção muito forte, maravilhosa. O Azteca é muito bonito, muito grande, é um dos templos do futebol. Cada vez que entrávamos em campo, é a casa do América, causava uma certa emoção, vinha a lembrança dessa Seleção de 1970. O quanto o futebol brasileiro representa para os mexicanos tem a ver com a Copa de 1970. Foi especial, realmente, ganhar título com o Azteca lotado. É difícil de lotar (são 87 mil lugares), mas quando chega nas instâncias finais, a torcida sempre lota.
O América é um dos gigantes do país e tem como dono a Televisa, principal TV mexicana. Qual a estrutura que você encontrou no clube?
A estrutura é boa. O Brasil tem alguns clubes com estrutura física maior. O América tem uma estrutura multifuncional, tem tudo do que o jogador precisa. São quatro campos no CT. Ali, todos trabalham juntos, temos a base e a equipe feminina no mesmo espaço. O América investe muito no feminino. Há um campo sintético que ajuda muito. Dois campos são para a equipe principal. Há uma integração muito legal entre profissional, base e feminino, difícil de ver no Brasil, onde quase todos separam a base do profissional. Nisso, sou saudosista. Trabalhei 10 anos no Inter, todos campos em volta do Beira-Rio, treinávamos ao lado do time principal, conversávamos com o técnico do profissional. Isso tem suas vantagens, aproxima as pessoas. O América tem um projeto a curto prazo de fazer um novo CT e separar base e profissional, como está acontecendo no Brasil.
Você tem histórico na base, foi medalha de ouro na Olimpíada. Tem lançado muitos jovens no América?
Temos o sub-23, a Liga MX tem competição em que se joga no mesmo dia do time principal, contra o mesmo adversário. As partidas são pela manhã, no CT . Usamos muitos meninos do sub-23 na semana, vamos rodando. Nosso grupo tem dois times e tratamos o sub-23 como o terceiro. Os grupos são mais curtos no México, é cultura estabelecida. Gosto bastante disso. Qualquer ausência por lesão ou suspensão no principal, nos apoiamos na base. Quando há data Fifa, perdemos metade do time para as convocações e buscamos muitos meninos para treinar conosco e disputar amistosos. Nessas datas Fifa, fazemos tour pelos EUA, com amistosos importantes. Enfrentamos Chelsea, Roma, Aston Villa no ano passado. Na próxima, isso deve se repetir. Muitos meninos jogarão.
Você falou dos EUA. Como é esse intercâmbio com a MLS e o que você pode falar da evolução do futebol por lá?
A MLS, pela proximidade, sempre presta muito atenção na Liga MX, existe intercâmbio de jogadores e técnicos muito forte. As contratações são nos dois sentidos. Com a Leagues Cup, competição que reúne as duas ligas, passou a existir certa competição entre as ligas, para ver qual está mais estruturada. Uma disputa saudável, faz com que os clubes estejam mais organizados, exige mais nível. A MLS melhora de forma muito rápida. Em pouco tempo, o mundo perceberá isso. A seleção dos EUA já é realidade. O México não vence os EUA faz cinco anos. São sete partidas sem ganhar. Isso é um recado de que estão crescendo muito.
A chegada do Messi só ajuda nessa aceleração de crescimento, não?
Com a chegada do Messi, os clubes estão com maior potencial de investimento. É um mercado que vai explodir com ainda mais força. Na Leagues Cup, visitamos alguns CTs de clubes da MLS. Impressionante o nível, são estruturas novas, já planejadas para uma equipe de futebol. Os campos são perfeitos, as academias são de última geração. Os novos estádios já têm formato de arena. A organização deles apresenta nível impressionante, que se vê só no futebol europeu. Isso aumentará com a Copa. É o início de um processo que irá longe. Você falou da Copa.
O México será sede também, inclusive você ficará sem o Azteca, pelas obras. Como o Mundial repercutirá no futebol mexicano?
Será uma belíssima oportunidade. Vi de perto a Copa de 2014, no Brasil, o quanto acabou sendo boa para os clubes que conseguiram revitalizar estádios, CTs. A Copa exige uma série de pré-requisitos. Será legal. Nível de campo, de CT , tudo isso, sendo bem detalhista, tem margem para crescimento. O futebol mexicano ganhará muito com essa Copa, colocará olho nesses detalhes. Há grande discussão sobre o futebol no México, pela Copa ser no país. Percebemos preocupação de todos de fazer um bom papel. Há grande mobilização. Ser importante para quem trabalha com futebol.
Bom, falando de Copa, há pressão sobre o técnico da seleção, Jayme Lozano, e seu nome soa forte como substituto.
É até surpreendente esse tipo de comentário. Acompanhamos, não estamos alheios. Me sinto respaldado no América, se discute um projeto de longo prazo, de passar bastante tempo afinando tudo, direcionando perfil de jogador, revitalizando o grupo. É difícil sair de um projeto muito sólido como este que temos. Fico super-honrado, é natural que se fale, pelos títulos conquistados, pelo peso do América, pela força. Procuro não pensar em seleção, me distrair com isso. Pela importância do projeto, ele me demanda 100%. Passo vendo jogador, olhando vídeos, trabalho o tempo todo. Vamos ver se alcanço o sonho de ter carreira longa dentro do de um clube como o América. É o que todo treinador quer. Estou feliz e valorizando muito. É tentar não pensar em coisas que podem aparecer. Sabemos como funciona o futebol. É foco e respeito.
Seu sucesso no México abriu mercado para técnicos brasileiros. Seu auxiliar o substituiu no San Luis, o Maurício Barbieri está no Juárez FC. Por que nossos técnicos têm dificuldade de trabalhar fora?
Estou muito feliz com isso. É importante. O treinador brasileiro prendeu espaço no nosso mercado, houve um movimento de chegada de estrangeiros que machucou muitos profissionais. Esse movimento está tirando espaço de gente importante. É um processo irreversível e natural. mundialmente falando. As ligas estão abertas a treinadores estrangeiros. No México, os locais são três ou quatro em 18 clubes. É algo visto como normal aqui e em todas as ligas. O Brasileirão é a liga mais importante das Américas, os clubes pagam bem. Natural que existam técnicos de nível querendo trabalhar no Brasil. O que cabe aos brasileiros é abrir mercado, não ficar preso só à nossa liga, aprender outros idiomas, ter esse espírito desbravador. Dar esse "peitaço" será importante. Temos nossa história no futebol e muitos técnicos qualificados. Mas não adianta ficar reclamando, é preciso trabalhar para reverter esse processo. O mercado brasileiro será sempre nosso. O curioso é que esse processo não é espelhado. Vemos muitos argentinos e uruguaios em qualquer liga do mundo. Brasileiros, são muito poucos.