Fui guri, no estrito sentido da palavra. Joguei muita bola na calçada, deixei muito tampão de dedo no caminho, saí muitas vezes com aquele vergão redondo na coxa, no formato daquela bola dente de leite que não quicava, mas doía para burro. Fiz gols históricos, passei por fases ruins, resolvi diferenças na mão, bati, apanhei, aprendi. Criei memórias e uma casca que só o convívio com a turma te dá. A calçada da minha rua era um Maracanã, sempre lotado, rugindo, nos empurrando para o ataque. Nada poderia ser maior. Era gigante em seus dois metros e meio por 10. Dois chinelos de cada lado como goleira, uma bola e 10 guris correndo atrás dela. Como era perfeito o nosso mundo. Kichute na rua, tênis branco de lona no colégio. Não precisava de mais nada.
Hoje, quando visito minha mãe, sempre paro uns instantes e fito a calçada da casa dela. Passa diante dos meus olhos, como se fossem hologramas, os nossos grandes jogos. Consigo ver o Marcelo da Esquina mostrando a sua classe e justificando que seu apelido Falcão não era por ser o único loirinho da rua. Me vejo driblando pela ponta, quase sobre o meio-fio, tentando resolver o jogo sozinho. E me assombro com a firmeza de zagueiro do Barata, meu primo quase irmão. Como posso me esquecer do Maurício, que tinha camisa de goleiro amarela com espuma no peito e que, para personalizar, ainda novinha, fez número e escudo do Inter com caneta Bic azul.
O Maurício era incomum como são os goleiros. Uma vez, jogávamos na frente da casa do Marcelo da Esquina, que, como sugere o apelido, morava numa esquina. E, como você sabe, esquinas sempre recebem oferendas de Umbanda. O jogo rolava, e o time do Maurício mais atacava do que defendia, o que dava tempo para que ele comesse uma bala de mel atrás da outra. Até que eu vi aquela cena e o cobrei com firmeza pelo individualismo Na vila, quem tem divide. É lei.
— Pô, Maurício, comendo bala sozinho? Nem oferece!
Com a tranquilidade de quem estava com a consciência limpa, ele reagiu rapidamente.
— Quem quiser bala é só pegar ali — avisou, apontando para uma bandeja com as balas, velas e outros presentes.
Aquele dia, algum orixá recebeu sua oferenda desfalcada. Ninguém se arriscou a comer as balas. Mas esses dias encontrei o Maurício. Está forte, viçoso, correndo atrás dos seus objetivos. Segue gaguejando um pouco, mas isso ele fazia antes das balas de mel.
Quando olho para essa calçada hoje me impressiono como cabiam ali 10 guris e uma organização tática. Porque não vai pensar que nosso jogo era bagunçado. Havia distribuição equilibrada dos jogadores em campo. Zagueiro não dava chutão, até porque quem chutava tinha de buscar a bola. O meio-campo era o craque, sempre, e o capitão. No ataque, viviam os matadores, aqueles que não perdiam chance. O Guardiolismo já existia ali na minha rua, e o mundo nem sonhava. Nós, por outro lado, só sonhávamos. Em ser o craque do Grêmio ou do Inter, em ser o Zico batendo falta, em ter a elegância do Sócrates ou de pegar o Paolo Rossi pelo pescoço e fazê-lo pagar por cada um dos três gols feitos no Brasil naquele 5 de julho de 1982.
Aliás, aquela Copa do Mundo de 1982 foi a primeira que curtimos como torcedores. Aos 10, 11 anos, entendíamos a razão de toda aquela mobilização por um jogo de futebol. Nunca masquei tanto chiclete na minha vida. O Ping Pong trazia uma figurinha da Copa. O armazém da rua não dava conta na reposição do chiclé. A mãe pedia para comprar uma cebola no armazém e, junto, eu já enfiava um chiclé. O pai pedia para comprar o Continental com filtro (na época, fumar era bonito, infelizmente) e, se não desse o dinheiro certinho, o troco vinha em... Ping Pong, claro. Poucos tinham a sorte do Márzio. A mãe dele comprava de caixa os chiclés. Quando isso acontecia, ficávamos em volta. Mais chiclé, mais chance de vir alguma figurinha nova para trocar. Para mim, faltou uma para completar o álbum. Embora eu tivesse o Castañeda, goleiro reserva da França, que ninguém tinha.
Éramos tão fissurados em futebol que, nos dias de jogo do Brasil naquela Copa de 1982, jogávamos na calçada até um minuto antes de a partida começar. Voltávamos no intervalo, para discutir o primeiro tempo e bater mais uma bolinha, e nos reuníamos de novo no final. Foi assim até aquele 5 de julho. Depois daquele jogo com a Itália, nos reunimos, nos lamuriamos juntos e, incrivelmente, não jogamos. Nem quisemos saber de bola.
O luto, porém, durou só aquela tarde. No dia seguinte, lá estávamos de novo tentando ser Zico, Falcão, Sócrates, Éder. Só não queríamos ser Paolo Rossi. Foi ele que conseguiu o impossível, parar de fazer girar em torno de uma bola o nosso mundo. Ele acabava no meio-fio da calçada, mas para nós era imenso, do tamanho dos nossos sonhos. Cabiam todos ali, mais 10 guris e uma bola dente de leite. Que se pegava em cheio na coxa...