Imagine um adolescente com o rosto tão carregado de espinhas que pessoas desconhecidas se autorizavam a interpelá-lo para dar as mais estapafúrdias receitas na boa intenção de melhorar aquela esquisita aparência. Uma vez, manhã de um sol para cada um em pleno dezembro da minha infância, eu e minhas espinhas esperávamos o ônibus na parada e uma senhorinha de cabelos em violeta se aproximou para dizer que tinha um sobrinho, segundo suas palavras, "muito pior do que tu". A receita incluía uma certa escatologia - xixi de cachorro nas áreas afetadas. Agradeci com todo constrangimento que um ser humano poderia sentir e rezei para que meu ônibus chegasse logo.
Era o fundo do poço para um adolescente tão cheio de sonhos e paixões recolhidas por meninas que não o viam como digno de desejo, e sim como um amigo bom ouvinte. Foi só na idade adulta que zerei esta conta. Fiz um procedimento que enfim deu certo, meu rosto ficou apresentável até para fazer televisão, como você que me lê pode ver todos os dias.
Esta coluna, no entanto, não é sobre adolescência. Pontuei esta fase da minha vida porque ela esteve embretada entre outras duas, estas sim maravilhosas no meu viver. Quando, depois de encontros casuais para atender minha jovem testosterona, casei pela primeira vez, recém-passado dos 20 anos, amei e fui amado como um príncipe. Aí, sim, começou para não mais ter fim uma enorme alegria de existir, de valorizar cada minuto do sonho realizado de ser jornalista esportivo, os amores, os prazeres, as dores, as alegrias, as amizades, a família, o sol, o Leme e, bem recentemente, a paternidade.
Gael completará cinco meses uma semana antes do dia 12 de outubro. O Dia das Crianças, que fez GZH me pedir uma coluna sobre minha infância, sempre será uma data especial para mim. Porque em mim ainda existe a criança feliz que, de tão feliz, me fez suportar minha problemática adolescência.
Mãe e pai afetuosos, o princípio de tudo. Desde minha primeira memória, restam nítidas as imagens das mãos carinhosas, dos braços estendidos em minha direção, das bocas a me encher as bochechas de beijos estalados. Fui alimentado de pouco leite materno, diz a dona Lia, mas de muito toque a materializar o quanto ela e o seu Mauro me amavam. Reproduzi, aos cinco anos, este modo delicioso que aprendi de manifestar amor quando nasceu meu irmão Luciano. Nossa infância foi próxima, aconchegante, com mais sintonia do que briga, uma delícia.
Pouco antes de meu irmão nascer, vivi a cena que até hoje conto em palestras a estudantes de Jornalismo. A origem de tudo. Meu pai tinha o hábito de ouvir futebol nas tardes de domingo num poderoso rádio de som muito forte. Ficávamos no pequeno pátio em frente à porta principal da casa e a voz do narrador avançava até a calçada. Um dia, quando saiu um gol e a narração descrevia a cena com imensa vibração, meu pai perguntou se eu queria ser o cara que fez o gol. Respondi a ele que gostaria de ser o sujeito que estava falando no rádio. Seu Mauro nunca mais me fez a pergunta. Dona Lia, durante o jogo, ficava circulando pelas peças como se não quisesse atrapalhar aquele momento de comunhão de pai e filho. Ela achou graça do que eu disse, mas também nunca mais me perguntou nada sobre minha vocação na vida.
Até começar o curso de Jornalismo, venci todas as etapas com extrema determinação. Afinal, na adolescência já por mim tão apedrejada, aconteceu também a separação deles, virei o homenzinho da casa aos 14 anos e me saí bem, afora as espinhas. Antes ainda, considerando a infância indo até 11 ou 12 anos, vivi um mundo encantado. Não havia nada nem remotamente parecido com ostentação ou luxo, éramos classe média baixa da gema, mas não faltava alimento nem brinquedo.
Meu pai, bancário, dava seu jeito de fazer sobrar o dinheiro dos bonequinhos de faroeste, do forte apache e da bola nova a cada ano. Minha mãe trabalhava em casa, era quem controlava o orçamento para nunca precisar dizer "não tem arroz, não tem feijão". Dizia muito "refrigerante só domingo". A televisão em preto e branco estava sempre ligada e preenchia minhas horas com desenhos e séries dos quais tenho lembrança até hoje. Josie e as Gatinhas, Corrida Maluca, Pernalonga, Pantera Cor de Rosa, Zorro, Perdidos no Espaço, Terra de Gigantes. Tenho decoradas as aberturas musicadas destes programas que se faziam acompanhar de chocolate quente no inverno, de ki-suco no verão.
Meu pai sempre foi severo com horário de dormir durante a semana. Eu o desafiava nas noites de domingo, quando ele exigia que eu deitasse como se fosse segunda-feira. Havia um programa na TV Tupi chamado Ataque & Defesa. Ia ao ar depois do Flávio Cavalcanti e mostrava os principais lances do jogo da tarde no Maracanã sempre lotado. Era apresentado por um jornalista gaúcho radicado no Rio de Janeiro, Ruy Porto. Meu quarto era contíguo à sala, a porta não fechava completamente, sobrava uma fresta larga o suficiente para que eu, se me esgueirasse na cama sem fazer barulho, conseguisse virar a cabeça para a posição dos pés e ver, todo torto, os gols de Fio Maravilha, Manfrini, Doval, Jairzinho, Paulo César Caju, Luizinho Tombo e outros menos votados. Não foram poucas as vezes em que meu pai ouvia meu movimento sorrateiro e entrava no quarto para me dar uns tapas por desobedecê-lo. Valia a pena cada vez que eu conseguia ver o programa inteiro.
Acordava na manhã seguinte sentindo dores no corpo pelo contorcionismo em busca da imagem enviesada da televisão, ossos do ofício. Tenho na memória, na verdade, cenas infinitas de meu pai e minha mãe em harmonia nos passeios de Fusca em busca de jogos de futebol amador pelos campos de várzea da zona sul da cidade. Parávamos, descíamos e ficávamos olhando aqueles times desconhecidos. Eu ouvia, fascinado, o barulho do pé na bola, da bola na trave ou na rede, os berros do goleiro desesperado ao ver o atacante sozinho à sua frente, todos os sons do futebol. Em casa, havia brincadeiras que incluíam meu irmão, outras eu desfrutava em solidão porque eram autorais. Eu criava histórias que desaguavam nas lutas e tiroteios dos soldados contra os índios, aquilo levava horas. Eu não importunava e não era importunado, um tácito acordo que me deu a noção de tolerar e harmonizar que carrego até os dias atuais.
Não tinha especial habilidade em jogar bolita, as bolinhas de vidro tão disputadas pelos guris da minha idade. As que eu conseguia ganhar viravam bolas para os bonecos de faroeste que se transformavam em jogadores de futebol. Meu pai tem dotes de marcenaria, fazia pequenas goleiras com rede de filó e eu narrava e comentava os lances que enjambrava sobre o tapete felpudo da sala, meu gramado imaginário.
Se nesta coluna eu enveredar a contas minhas histórias como jogador de botão, aí o texto não termina nunca mais. Modestamente, eu era muito bom neste esporte. Quanto a futebol, desde criança sempre gostei mais de ver do que de jogar. Quando me aventurava, era de luvas. Não fui mau goleiro, mas só conseguia me atirar para o canto esquerdo. Para o direito, não tenho explicação para isso, eu não ia, tinha medo de me machucar.
À medida em que vou escrevendo esta coluna, as lembranças ganham cores e cheiros. Não trazem melancolia, e sim uma profunda sensação de ter sido feliz por todo tempo em que a inocência vigorou. Lembro agora, por exemplo, que sofria por ter os dois dentes da frente insistindo em aparecer mesmo com a boca fechada. Meus colegas de sala de aula me chamavam de dente de coelho. Hoje, me parece algo banal, irrelevante. Na época, porém, agora consigo lembrar que aquilo foi meu primeiro incômodo com a aparência. Tirei dois dentes laterais da arcada superior na mesma consulta para dar espaço ao aparelho que levou dois anos até completar a missão de enterrar o apelido de dentuço.
Relendo as frases que já escrevi, concluo que o distanciamento daquela fase da minha vida fez o efeito de me deixar colorida na memória muito mais a alegria do que a tristeza que eu tenha sentido entre os três ou quatro anos até 11 ou 12 de idade. Não tive muitos amigos quando criança, eram mais companheiros de jogar bola, não frequentavam minha casa nem eu a deles. Não me ressinto disso, gosto de ter sido como foi. Como qualquer pessoa com mais de 50 anos, é grande a tentação de dizer que aqueles, sim, eram bons tempos. Não havia o computador a dominar as mentes, a internet a conspirar contra a criatividade, o tudo pronto que me parece tão sem graça e que seduz completamente as crianças de hoje em dia.
Os novos tempos serão os tempos do Gael, não sei do que brincarei com ele. Precisarei me esforçar para não ser o pai chato que reclama e critica as brincadeiras do tempo que não lhe pertence mais como criança, e sim como um quase idoso. Prometo me empenhar nesta intenção. A criança que ainda hoje mora em mim está lá, intocada, sem entender por que não dá mais na TV Corrida Maluca, Josie e as Gatinhas, Zorro, Pernalonga. E tentando também entender por que, afinal, não ganho mais chocolate quente nem ki-suco...