Popular, mas elitista ao mesmo tempo. Potente, mas silencioso. Com negros brilhando dentro de campo, mas raros comandando times e clubes fora dele. Para tentar entender o quanto o mundo da bola pode ajudar a reverberar e a engrossar a luta contra o racismo, a coluna foi ouvir Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
Marcelo é, além de ativista, um sujeito de boa conversa e extremamente preparado para tratar do tema. Tanto que o assunto saiu das quatro linhas e trouxe para nós uma visão completa sobre o racismo – que está escancarado, mas ainda é preciso que mentes privilegiadas como a do Marcelo venham nos apontar para que o enxerguemos. Portanto, neste simbólico 20 de novembro, não os convido para que leiam esta entrevista: os convoco. E, depois de ler, reflita e espraie o que aqui está escrito.
O futebol é racista?
Sim. O futebol é extremamente racista. Isso é possível detectar, nem tanto pelos casos. O racismo é possível detectar quando não vemos pessoas negras em outras funções que não seja jogador. Temos a mão de obra negra, mas não temos negros em posições de comando. É o maior caso de racismo. Precisamos discuti-lo para salientar. O futebol não usa currículo para contratar nesses postos de comando. Contrata por questões políticas, por relações interpessoais. E esses contratados não são negros.
Isso cria a barreira invisível.
Acontece que nas relações de trabalho, de troca de conhecimento e de networking dessas pessoas, não estão os negros. As pessoas não se dão conta de que isso faz parte do racismo. Você ouve: “Aqui no clube não temos racismo”. Mas eu devolvo: "quantas pessoas negras você tem em cargos de comando?"
Mas isso é, na verdade, um estrato da nossa sociedade. Aliás, o futebol reproduz a sociedade.
Sim, se parar para pensar, esse mesmo racismo no futebol é o estrutural que vemos na sociedade. Não temos negros em posições de decisão ou proeminentes. Tivemos um ou outro. Joaquim Barbosa, no STF, um governador aqui no Rio Grande do Sul (Alceu Collares). No esporte, é o mesmo. Não temos negros nessas posições de destaque (fora do campo). Isso passa pelo racismo, passa pela história de que negro não tinha capacidade intelectual de estar naquela posição. Daquela ideia, lá atrás, de que negros são malandros, preguiçosos. Foi, na época, para escravizá-los. Não fizemos um trabalho pós-escravidão para que essa mentira deixasse de existir. A liberdade chegou, mas não se contou a história de que na África, no período da escravidão, os negros tinham conhecimentos de tecnologia, por exemplo. Isso não chega às escolas, ao grande público. O que chega é que eram preguiçosos, apanhavam por isso. O que perpetua o racismo.
De que outras formas se manifesta o racismo?
A partir da falta do entendimento do que é racismo. A grande parcela das pessoas nos locais em que acontece um ato racista acha que é apenas um insulto, um xingamento. Não percebem o quanto essas palavras mexem com a estrutura de uma população. Não foi o Celsinho (jogador do Londrina, que ouviu insultos racistas de conselheiro do Brusque, em jogo da Série B) que foi ofendido, foi todo um coletivo. Essa falta de entendimento do que é o racismo gera esses problemas, diminuindo o que a gente diz ou não acreditando.
Falta um entendimento da sociedade do que é racismo e onde nos afeta
MARCELO CARVALHO
DIRETOR DO OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL
Como o futebol pode se envolver nessa luta?
Com ações de combate. O que vemos hoje já é um avanço. Mas é uma postagem, uma camiseta. Porém, qualquer diálogo mais profundo não é feito. Falta um entendimento da sociedade do que é racismo e onde nos afeta. Entra o que você falou no Sala de Redação de quinta-feira: as pessoas precisam tomar partido porque morre um negro a cada 23 minutos, temos uma desigualdade social ainda mais perceptível na pandemia. A necessidade de tomar partido é o entendimento do que é o racismo, de como ele nos adoece e nos mata.
Como branco, eu jamais conseguirei dimensionar o que um negro sente ao sofrer racismo. Como o racismo toca em você?
Começa pela saúde, física e mental. Você receber o impacto da notícia da morte de uma pessoa negra, da notícia do STJD que não consegue punir o agressor, tudo isso nos afeta. Há conversas em toda a família negra que não vêm através de palavras. Mas o significado delas nos afetam.
Que conversas são essas?
De uma mãe dizer sempre para o filho: “Não esquece o documento, corta o cabelo, cuida da tua aparência”. Estamos sempre sendo preparados para que as pessoas nos enxerguem como iguais. As crianças negras começam, pequenas, a ser ensinadas a ter esse cuidado. São orientadas em casa a não levar a mão a uma prateleira, para que não achem que estão roubando, a evitar correrem na rua. Isso afeta nossa liberdade. Estamos brincando de pegar. Você é branco e sai gritando e correndo. Está brincando. Eu saio correndo e gritando, viro suspeito. Andar com esse alvo nas costas nos afeta. Essa autodefesa de como andar, como se portar, isso afeta nossa liberdade. O contexto afeta nossa maneira de se portar, de falar. Quando começo a falar de racismo, viro rebelde, militante chato. Estou lutado por direitos. A luta contra o racismo não tem direita, esquerda, não é negro contra branco. É luta por direitos civis, é progressista, humanitária. Toda família negra já perdeu uma pessoa para a violência.
Os clubes poderiam ser agentes potentes nessa luta?
Vejo os clubes como veículos de comunicação. Não é à toa que querem produzir seus próprios conteúdos. Se há todo esse espaço, deveriam usar para debater questões sociais importantes. Até para que seus atletas se sintam protegidos ao abordar esses temas. Os clubes precisam promover palestras e debates sobre racismo dentro de suas estruturas. Mais do que isso, abrir as portas do futebol para pessoas negras irem falar a dirigentes, associados, conselheiros, jogadores e, principalmente, com atletas da base. É preciso levar adiante o que é racismo. O jogador vai falar de racismo só quando perceber que o clube está ao lado dele. Roger Machado foi contundente no Bahia porque se sentiu respaldado. As pessoas precisam entender que piada racista, frase racista e opinião racista é racismo. Só mudaremos isso dialogando, e os clubes podem promover. Temos muitos jogadores negros e milhões de torcedores negros. O futebol precisa ir além.
As pessoas precisam entender que piada racista, frase racista e opinião racista é racismo
MARCELO CARVALHO
DIRETOR DO OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL
As arenas elitizaram o futebol. Isso também não afasta os negros da arquibancada, já que boa parte das camadas desfavorecidas são formadas por eles?
O futebol tem três momentos. É elitista e racista no seu começo. Depois, acolhe jogadores negros, que são habilidosos e viram mão de obra para ganhar títulos. A partir daí, vira popular, ganha estádios gigantes, ocupados pelas massas, formadas em boa parte por negros. Hoje, ele retrocede. Os negros fazem parte do espetáculo, mas no campo. Mais: temos um público branco na arquibancada. As arenas trouxeram segurança, mas afastaram o povo. O futebol profissional não é popular. Esse é o da rua.
Temos poucos jornalistas esportivos negros. Precisamos avançar nisso.
É uma barreira que precisamos quebrar. Diz-se que atletas negros não se manifestavam sobre racismo. Mas as perguntas eram sempre as mesmas. Quando o jornalismo esportivo tiver mais diversidade, teremos mais perguntas com abordagens distintas e respostas novas. Precisamos de diversidade no jornalismo, em todas as áreas. Aliás, precisamos disso em todos os setores. Um tribunal com negros terá outro olhar. Nos clubes, quando houver diversidade no marketing, na comunicação, o tema será debatido com outros pontos de vista.