Karine Alves milita no jornalismo esportivo há 16 anos. Natural de Porto Alegre, formada pela PUC, é a atual apresentadora do programa Troca de Passes, do SporTV, e foi a primeira mulher negra a comandar o Esporte Espetacular, programa nobre da Rede Globo, nos últimos 15 anos. Começou sua carreira na RBS TV como editora de imagem antes de ir para a reportagem, função na qual se consolidou até trocar de ares, transferindo-se para o Rio de Janeiro há uma década.
Estudiosa da temática negra e referência do assunto na comunicação, ela é a quarta entrevistada de GZH da série Nossa Voz – que traz, desde segunda-feira, a opinião de personalidades ligadas ao esporte nacional. Karine falou sobre a luta antirracista, suas percepções sobre a presença de negros no jornalismo brasileiro e deu dicas culturais para quem se interessar em aprender sobre o assunto.
O que é racismo para você?
Essa pergunta me faz refletir tantas coisas... Racismo, em primeiro lugar, é crime. Inafiançável. Nem deveria ser alvo de discussão. Está na lei. Mas quando se fala de racismo, penso direto em um sistema opressor. As pessoas sabem como esse sistema age? Estão preparadas para desfazer sistema? Elas estão preparadas para entender que muitas vezes estão, sim, sendo racistas mesmo sem ter o intuito de falar algo? Então o racismo hoje, no Brasil, é um crime perfeito, porque nunca vi ninguém ser preso por cometer um ato racista. Eu nunca vi, não sei se vocês conhecem alguém... E quando a gente fala crime, parece pesado. Só que não é pesado, é isso que fizeram com o Brasil. Se voltarmos lá na história, entendemos melhor. O racismo tem várias facetas. Com o passar do tempo tempo, conforme a sociedade fica mais complexa, o racismo vai se renovando, mudando de roupa, se incorporando. Fica cada vez mais velado, criando artimanhas.
Como assim?
Por exemplo, muitas de nós escutamos que se um negro se expõe e se posiciona, é visto como "Nossa, que vitimismo!" ou "Que mimimi!". Mas não é questão de ter pena de si mesmo. Eu não escolhi ser negra, eu não escolhi nascer no Brasil. Ser negro e nascer no Brasil tem um passado que nos faz viver nesse mundo dessa forma. Mas não define, na verdade, quem eu sou. O passado determina o jeito que a Karine vive e enxerga as coisas hoje, mas não me diz quem sou. Quem define quem eu sou é meu conhecimento, meu estudo, a questão familiar. Se parar para pensar, essa primeira pergunta que vocês me fizeram: o que é racismo? Já é um exemplo de racismo estrutural. Por que a gente precisa esperar chegar novembro para perguntar para uma pessoa negra o que é racismo? Todos nós deveríamos saber o que é racismo e agir de acordo com o que é esse crime. Ninguém tem dúvida se é crime matar alguém, mas no racismo tem. Então pergunto: a sociedade está preparada para mudar isso internamente? Aceitar o outro como ele? Não é o que vemos.
Existe uma ausência de posicionamento entre as pessoas envolvidas com o esporte nesse tema?
Isso vem mudando com o passar do tempo, principalmente porque estamos nos posicionando cada vez mais. É um reflexo de tudo o que plantamos ao longo desse tempo. Mas sim, existe uma não fala, e acredito que seja maior entre atletas, por medo de ser prejudicado. Infelizmente a gente tem uma lógica mercantil. Até por isso, acreditar em meritocracia é acreditar no Papai Noel. Só existe meritocracia se voltarmos à Idade da Pedra, quando todos saíram nas mesmas condições e tendo apenas obstáculos naturais. Agora temos questões sociais. Estou puxando a meritocracia para chegar no esporte porque, por exemplo, a pessoa que nasce com pouco ou nenhum privilégio, não consegue ter um sonho. A meta é trabalhar hoje para comer amanhã. Como vai dizer que essa pessoa tem a mesma chance do que quem tem estrutura? A população pobre é a população negra. Então, na universidade, você vê que são pouquíssimos negros, e assim vai. No esporte é igual. A parte que envolve a intelectualidade também é pequena. Temos nossos craques, nossos ídolos, mas só com a bola. A parte intelectual é diferente. E sofremos no país da chance única. Então sendo funcionário, sendo mandado por uma maioria branca, imagina que seja essa única chance na vida para ser jogador de futebol. Então, evita falar algo que desagrade o clube, porque sabe que o dirigente não pensa dessa forma, vão chamar de "mimizento", dizer que está exagerando. E não se sente à vontade para opinar porque não se vê naquela posição de poder. Ele não vê outro negro para poder trocar um olhar e dizer: "Você está me entendendo?".
Como foi para você conseguir entrar no esporte?
A base de tudo vem da educação, e não estou falando de educação só de casa. Fui bolsista da PUC, tinha 50% de desconto, e todos os semestres tinha de comprovar que não tinha essa condição financeira. Tentei várias vezes entrar na UFRGS, mas não consegui. Fiz cursinho pré-vestibular e via no quadro coisas que nunca tinha estudado no meu colégio estadual. Então, a maioria dos alunos da UFRGS era quem tinha dinheiro, ia de carro, e nada contra, não são culpados nem ruins. Se tem isso, ótimo, fico muito feliz. O que quero é que todos tenham isso. Mas voltando, fui cotista na PUC e trabalhava ao mesmo tempo. Não pude escolher, queria ser repórter de revista, mas fui para a RBS TV como editora de imagem, e achei interessante. Depois fiz um piloto, teste de vídeo e consegui entrar para a reportagem. Foi quando entendi minha solidão. Olhava para o lado e não enxergava ninguém parecido comigo na redação. Éramos apenas eu e o Manoel Soares. Até apareceram outros depois, mas me digam: quais apresentadoras negras estão nos programas esportivos?
De destaque nacional tem a Maju Coutinho, mas é em outra editoria.
Pois é. Tem gente negra no campo, na torcida... Cadê essas pessoas nas outras áreas? Elas não estão na caminhada comigo. Então, quando me perguntam se sou a favor de cotas afirmativas, sim sou a favor. Quando acabou a escravidão e vieram os imigrantes da Europa, teve políticas para eles. Existia um objetivo de embranquecer o Brasil durante o período, e o negro, quando acabou a escravidão, precisou carregar o estigma de vagabundo, criminalizaram a capoeira. Gosto muito da história do Brasil, de mergulhar nisso, e aqui no Rio percebemos o crime que foi feito e o quanto foi injusto. Não estou falando que essas pessoas (imigrantes) não precisavam. Mas é que para os negros não teve chance. Foram tirados à força do país de origem para ser escravizados aqui.
O racismo é mais forte no Rio ou aqui no RS?
Acho que os dois são racistas, mas de formas diferentes. Passei 30 anos no Rio Grande do Sul e vou completar 10 aqui no Rio. No RS, é muito mais velado, aquela sujeirinha que bota para debaixo do tapete. Os cariocas acham que aí é mais racista, mas eu discordo. Aqui é mais descarado. Tenho consciência dos meus privilégios de hoje, trabalho na TV, fiz minha carreira e tudo mais. Mas imagina com as pessoas que não têm nada disso, só suas vidas e vontade de sobreviver? Então, acho que o Brasil inteiro sofre dessa mesma doença, a discriminação só muda o jeito de colocar na prática. Na minha opinião, a história do RS é muito mal contada. E os lanceiros negros da Revolução Farroupilha? Quando chega a semana do gaúcho, sinto vergonha porque sei que é uma mentira e que me contam desde a escola, a mesma coisa quando falam da escravidão. As narrativas negras são marginalizadas. Como mudar? Precisamos mexer na estrutura de poder.
Você se sente uma referência para outras meninas negras?
Não sei responder isso porque eu tenho meu pé no chão. A televisão mexe muito com a vaidade das pessoas, tanto de quem está na frente da câmera quanto de quem está por trás. Pensam que é um glamour, a vida perfeita, como no Instagram, mas é um recorte. Mas escuto e leio mensagens sobre essa questão, gente dizendo que enxerga a filha ou a esposa em mim, que gosta de me ver de trança na TV, falar de esporte. Diante disso tudo, sim, acho tenho essa representatividade. Mas a representatividade só na imagem não basta. Quando falamos de estrutura, ainda precisamos de mais mudanças para inspirar as pessoas.
Não sei se vai ter mais consciência daqui a 20 anos, mas vai ter mais acesso à informação. Hoje, por exemplo, não são mais aceitas expressões racistas como "a coisa tá preta" ou "coisa de preto". Também diminuímos (a sensação) de que mulher negra é só Globeleza, rainha do Carnaval, aquela sexualização.
KARINE ALVES
Sobre racismo no país
Isso serve também para a comunicação como um todo?
Quando escolhi fazer comunicação foi porque gostava de música, e quando cantava as pessoas paravam para prestar atenção. Então eu pensava: "Que legal, me escutam, posso usar essa voz para alguma coisa". Meu papel como jornalista não é falar sobre racismo, mas posso fazer esse diálogo andar, fazer essa mudança acontecer. Estou à frente do Troca de Passes (no SporTV), no Esporte Espetacular (na Globo), e isso é visto com uma mudança social para as pessoas. Então estou ajudando, tendo uma representatividade, deixando um legado, assim como outras pessoas também abriram as portas e temos de lembrar. Quando fui fazer o Esporte Espetacular pela primeira vez, saiu que eu seria a primeira mulher negra a apresentar. Perguntei para a assessoria da Globo. Disseram que não. Teve outra mulher negra que apresentou. Vocês lembram?
Não.
Foi a Lica Oliveira. Era uma atriz, formada em jornalismo, apresentou entre 2005 e 2006. Pois é, mais uma prova do quanto apagam a nossa história. Imagina o quanto não apagaram ao longo da história do Brasil. Então, sou a segunda mulher negra. A Lica abriu as portas. Que legal, que venham mais. Ainda é muito pouco.
Daqui a 20 anos haverá mais consciência?
Não sei se vai ter mais consciência daqui a 20 anos, mas vai ter mais acesso à informação. Hoje, por exemplo, não são mais aceitas expressões racistas como "a coisa tá preta" ou "coisa de preto". Também diminuímos (a sensação) de que mulher negra é só Globeleza, rainha do Carnaval, aquela sexualização. A mulher pode ser isso, mas é também pensadora, que paga contas, cria uma família.
Mas notou alguma evolução de 2005 a 2021?
Até notei, mas falta muito na parte de cima da pirâmide. Teve uma diferença mínima. Tanto é que só tem a Karine em programas de esporte. Não sei até que ponto essa mudança aconteceu porque veio essa cobrança por parte também dessa minoria ou se é uma iniciativa das empresas, que precisam ter diversidade. Algumas só pensam na imagem e não na estrutura. O próximo passo é mexer com a estrutura do racismo institucional. Lembram aquela ação da Magalu, com as vagas de trainees para negros? Teve apoio e gerou uma discussão muito intensa nas redes sociais. Vi muita gente questionando os candidatos, de entrarem porque são negros, mas não vi ninguém perguntar se o ambiente empresarial está pronto para receber essa pessoa. Acho que não, porque se as pessoas não aceitam uma ação afirmativa, o trainee vai encontrar um ambiente hostil, sofrer um outro tipo de discriminação. Um cotista entra na faculdade pelas vagas asseguradas, mas lá dentro a aula é a mesma para todos.
Qual é a importância da cultura nesse combate antirracista?
A cultura é fundamental. A leitura, nem se fala. Eu nem seria jornalista se não tivesse tão forte na minha vida, por exemplo, a música. Meu avô, que nem conheci, tocava todos os instrumentos de corda. Fui criada em um ambiente cultural, e a música teve um peso fortíssimo. Desde criança, escutava Elis Regina. Gostava de “músicas de adulto”. Minha mãe estava sempre ouvindo Clara Nunes, eu dizia que não aguentava mais. E quando me formei em jornalismo, a música que acompanhou minha entrada foi Morena de Angola na voz da Clara Nunes. A leitura também foi responsável por formar a Karine Alves. É até interessante, porque não tive muito essa coisa de pai e mãe contarem historinhas para dormir. Em compensação, desde pequena adoro livraria. Passo horas em uma.
Pode indicar alguns livros?
São dois da Djamila Ribeiro: "Quem tem medo do feminismo negro?" e "Pequeno Manual Antirracista". É leitura fácil, rápida, o livro baratinho. É importante ter esse acesso fácil também. "Racismo Estrutural", do Silvio Almeida, também é bom, ajuda a entender diversos aspectos, explica o que é raça. Para crianças, indico Carolina Maria de Jesus, na versão ilustrada. Li agora, depois de adulta, uma história linda. Para quem tem mais tempo e se interessa pela história do Brasil, sugiro "Um defeito de cor", da Ana Maria Gonçalves. Vale cada página. De esporte tem "O Negro no futebol brasileiro", de Mário Filho, que explica a influência dos negros no esporte.