Fernanda Garay Rodrigues, 35 anos, natural de Porto Alegre, é uma das mais importantes jogadoras de vôlei da história do Brasil. Campeã olímpica, mundial e de praticamente todos os campeonatos que a modalidade oferece, a ponteira é, também, uma liderança nas lutas de conscientização social, como racismo e feminismo.
Por vídeo, direto de Curitiba, ela atendeu a reportagem e tratou da luta antirracista. Segunda entrevistada da série Nossa Voz, em referência ao mês da Consciência Negra, Fe Garay apresentou um panorama atual do combate aos preconceitos, falou das mudanças que observa em cada geração entre outras observações.
Qual é a situação atual da luta antirracista?
Acho que evoluímos bastante. Só em falar mais sobre o tema já temos uma evolução. Trocar ideia, aprendizado, ouvir mais as pessoas ligadas ao esporte, de alguma forma faz a gente caminhar. O caminho é longo. Dados para analisar quanto evoluímos eu não tenho, mas percebo que estamos no caminho. Estamos mais atentos politicamente.
Dói mais o ato racista nítido, como atirar uma banana, ou aquele mais discreto, como um olhar ou alguma ação até involuntária, como alguma pergunta inconveniente?
A gente vive em uma estrutura racista. Hoje falamos bastante no termo racismo estrutural. Quando falamos do ato racista, daquele que todos conseguem identificar, é inquestionável. O racismo estrutural se mostra de forma diferente, é uma atitude, um olhar. Mas isso é fruto da estrutura social que a gente vive. Isso é legal a gente falar porque não basta não ser racista, precisa ser antirracista. Precisamos entender que vivemos em uma estrutura racista. Precisamos alertar a todos que nessa estrutura está o racismo, muitas vezes até involuntário.
O que sente quando alguém lhe diz que é fonte de inspiração?
Isso pode influenciar positivamente: estar onde outras mulheres negras não puderam. Ocupamos lugares que mulheres negras não se veem, apesar de ter todo o direito. É importante que não só negras, mas mulheres me vejam nesse lugar e se sintam representadas. É algo muito legal e me enche de alegria em poder compartilhar. Recebo feedback de pessoas que se sentem orgulhosas. Quando ponho a camisa da seleção, não represento apenas os negros, o que já me enche de orgulho, mas também a nação como um todo.
A educação é essencial. Não só em casa. Sou negra, minha família é negra, e poucas vezes tivemos esse debate. Então, nas escolas, é fundamental ter esse assunto, mostrar as informações sobre a escravização do povo negro, como fomos desumanizados, perdemos nossas riquezas e viemos zerados.
FERNANDA GARAY
Sobre o papel da escola
Falamos em ações necessárias de educação, políticas públicas. Mas onde entra o esporte nesse combate antirracista?
O esporte é uma ferramenta de transformação social. Precisamos olhar pelo recorte social. A maior parte da população negra é a população pobre. O esporte é uma ferramenta de ascensão. O esporte foi, por muito tempo, um lugar para ter sucesso. O esporte é uma ferramenta poderosíssima. Mas precisamos olhar para outras maneiras. Quando a pessoa liga a TV e vê a Fê Garay jogando é legal, mas é também bom quando vê a Maju Coutinho apresentando um jornal com repercussão nacional. Quando vê um ministro da Justiça, as pessoas negras veem, vão estudar Direito.
Como as escolas e as famílias podem ajudar na conscientização?
A educação é essencial. Não só em casa. Sou negra, minha família é negra, e poucas vezes tivemos esse debate. Então, nas escolas, é fundamental ter esse assunto, mostrar as informações sobre a escravização do povo negro, como fomos desumanizados, perdemos nossas riquezas e viemos zerados. Nem sempre isso é ensinado, mas é algo que nos orgulha, nossa história antes da escravização. Precisamos que todos saibam da participação do povo negro na colonização, e não só dos outros povos.
Qual é a influência do Estado no combate?
Quando você fala em Estado, penso em políticas afirmativas, garantia de acesso e oportunidades iguais para pretos e brancos. É fundamental. Mas confesso que para identificar mais formas, não sou a pessoa mais indicada. Mas vejo que é preciso proporcionar políticas públicas para fazer esse reparo histórico.
Quando se olha no espelho, o que enxerga?
Me vejo uma mulher forte, guerreira, corajosa, em crescimento, amadurecimento. Nos avaliamos como ser humano, valorizando nossas melhores características. Mulher se cobra um pouco mais nos aspectos estéticos, mas acima de tudo busco enxergar o que tenho de melhor. Vou te falar a verdade: se não fosse uma entrevista sobre o tema racial, talvez nem mencionasse a cor da pele. Além de me ver e enxergar as potências, gosto de ver todo o processo de vida, de construção. A gente muda a forma de se ver também. Estamos em evolução. Não é só o físico, o figurado também importa.
Você conviveu com três gerações de jogadoras. Nota alguma evolução a respeito de temas sociais entre atletas, dirigentes, técnicos?
Dirigentes, técnicos... ainda estamos falando de uma minoria. Os atletas, sim, têm maior conscientização nessa atual geração. O debate é maior, falamos mais sobre isso. Eles se conectaram com a negritude mais cedo. Isso é ótimo porque nós, atletas, ficamos em uma caixa focados apenas em sermos os melhores. Por muito tempo fui assim também. Fiquei em uma bolha afastada dos outros assuntos, como política, economia e o racismo. Meu despertar é bastante recente. Estou recém me descobrindo e aprendendo. Essa entrevista é uma oportunidade de aprender, trocar, refletir. Os mais jovens estão mais ligados nessa luta. Estamos falando de uma terceira, quarta geração de negros aqui no Brasil depois do fim da escravidão. Percebam que temos menos tempo de pós do que tivemos de 300 anos de escravização do povo negro. Não sei se é um fato, se os números confirmam, mas a percepção é de que a nova geração tem mais informação e aprendido mais sobre esse tema.
Você tem mais raiva ou pena de um racista?
Todos estamos em construção, podemos errar. Não posso dizer que tenho mais raiva porque acabei de falar que estamos em um racismo estrutural que parece feito para perpetuar esse preconceito e que as coisas não mudem. Tenho esperança de que uma pessoa que comete um ato racista possa aprender e agir de uma forma diferente. Só pensando assim consigo acreditar que possa construir um futuro melhor para a nossa sociedade.