A demissão de Miguel Ángel Ramírez com 101 dias no cargo mostra o quanto nosso futebol ainda é refém de resultados e de projetos de curto prazo. Em alguns dias, quando tomar o caminho de volta para as Ilhas Canárias, o espanhol talvez consiga lá, sob o sol do verão nesse paraíso espanhol, entender o processo de trituração pelo qual passou nos últimos três meses.
A aventura no futebol brasileiro — e não há nenhum termo mais adequado do que aventura para qualificar a vida de técnico aqui nos trópicos — era para durar dois anos. Levou 101 dias. O espanhol foi só mais mais um para a estatística do nosso futebol e sucumbiu à indústria da pressa, movida a resultado. Ninguém sobrevive se a bola não entrar. É gol ou nada.
Ninguém aqui, é bom deixar claro, está se esquecendo de que o futebol é um esporte de competição e, como tal, todos que participam dele, seja jogando ou torcendo, estão ali para comemorar a vitória. A ressalva que faço é sobre o caminho para chegar até ela.
Pode ser de forma planejada, com um projeto como guia, sabendo o efeito de cada passo. E ciente de que os tropeções acontecerão. Ou pode ser de forma intuitiva, apostando em fórmulas emergenciais, que podem garantir a próxima taça e uma festa circunstancial. Os dois caminhos levam ao mesmo lugar, mas é inegável que as viagens mais longas rendem mais histórias.
O trabalho de Ramírez, é claro, não aconteceu. Afundou-se em 30 dias. Depois daquele 4 a 1 no Juventude, em 8 de maio, o Inter entrou numa espiral que só parou com os vexames, em sucessão, do 5 a 1 para o Fortaleza e da queda para o Vitória no Beira-Rio. Dois cruzados no queixo que nocautearam um projeto de dois anos incrementado por uma ideia de futebol, algo raro aqui no Brasil. E esse foi o grande problema desse projeto: estamos no Brasil.
Há erros de ambos os envolvidos, Ramírez e a direção. O espanhol porque se aferrou à sua ideia de jogo e ao seu modo de trabalho e ignorou as particularidades do lugar em que pretendia aplicá-los. O jogo de posição é algo novo por aqui e muda o eixo de relação do jogador com o jogo. Sua referência não é a bola, mas o espaço. Outro ponto: o jogador brasileiro, pela nossa forma de ser e pela nossa cultura, precisa ser cativado e adulado. Gosta, como todos nós, dessa relação mais fraternal, de acolhimento.
Ramírez chegou com um modo europeu de trato. De largada, implantou algumas regras, como a chegada uma hora antes do treino, o almoço no CT depois dos trabalhos matinais, o fim do refrigerante e a limitação ao uso do celular. Não flexibilizou sua cartilha nem abriu margem para concessões. Isso causou desconforto e carência daquela relação mais paternal que faz nossos jogadores se sentirem seguros. Há quem diga que as questões táticas nem estavam tanto entre as razões para o desalinho entre treinador e grupo.
A cota de erros da direção está na falta de criação de uma ponte que aproximasses esses dois mundos distantes, de um espanhol aferrado aos seus princípios e de jogadores carentes de um afago. Tanto é que ela voltou a procurar um coordenador técnico, cujo perfil é de um ex-jogador que tenha sido liderança em vestiário. Porém, esse equívoco tem um erro de origem, que foi o de não calcular o impacto de uma mudança tão profunda na forma de jogar com tão pouco tempo para a pré-temporada e para treinar entre os jogos. As derrotas bateriam na porta, era preciso estar pronto para absorvê-las e usá-las para correções de rota.
Insisto sempre que estamos no país em que se joga muito e se treina pouco. Fazer o feijão com arroz já é um desafio. Imagina tentar implantar um projeto que mexe com as raízes do nosso futebol e da forma como se vê o jogo aqui, sempre com o olho mais no placar do que no campo. Ramírez, quando sentar-se de frente ao mar lá nas Ilhas Canárias e fizer um balanço do que foram esses 101 dias aqui no Inter, se dará conta disso.
E de que ele foi apenas mais uma bola da vez nesse moedor de técnicos. Infelizmente, não estamos prontos, ainda, para olhar o jogo por um outro lado.