A publicação da Medida Provisória 984 pelo presidente Jair Bolsonaro pegou dirigentes e especialistas em mercado do futebol de surpresa. Não é para menos. A MP, que tem quatro meses para ser votada no Congresso, muda a forma de os clubes negociarem seus direitos de TV, faz com que o mandante seja dono do produto e o venda para quem entender.
Claro que abre uma discussão jurídica, a respeito de contratos em andamento — como o o Brasileirão, que vai até o final de 2023. Para jogar uma luz sobre os impactos dessa MP, caso ela seja aprovada, a coluna foi ouvir o consultor Fernando Ferreira, sócio-diretor da Pluri. Confira:
Como você analisa a MP 984, assinada nesta quinta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro?Para o Bolsonaro, tem só a questão política. Para o futebol, a MP tem um efeito impressionante.
Esse efeito seria positivo ou negativo para os clubes?
No saldo, é positivo, sem dúvida. Possibilita que os clubes tenham mais condições de negociação perante o mercado. Vamos dividir isso em dois pontos. Na relação clube x mercado é positivo, traz possibilidades de negociação melhor com os players, pode atrair outros players para a mesa. O bolo todo tende a ser positivamente afetado. Por outro lado, há risco de maior desequilíbrio nas cotas, nas negociações. Essa (mudança) era uma demanda forte do Flamengo, que fez lobby enorme com o presidente Jair Bolsonaro. As frequentes aparições do (presidente Rodolfo) Landim em eventos do Bolsonaro não era à toa. O Flamengo, não podemos nos esquecer, está em conversas com a Amazon. Isso (a MP) tem valor enorme. Se os clubes brasileiros resolverem atuar em bloco, a mudança será positiva. Eles terão muito mais força para negociar com mais interessados. Seria o sonho, mas temos tradição de não sabermos negociar em bloco (no futebol brasileiro).
A mudança, no entanto, é motivada por um interesse individual.
Temos essa tendência clara do Flamengo em ir por ele. E aqui não é informação, é análise. A postura do Flamengo é "sou grande, sou maior, consigo negociação sozinho". Se for assim, haverá desequilíbrio de valores. Mas, como disse, a mudança seria positiva se os clubes agirem em bloco. Mais ainda se agissem por competições, pelo futebol brasileiro como um todo. Ou por regiões, por grupos. Porém, há esse risco de, não agindo de forma conjunta, criar-se um abismo, com grandes empresas, como Amazon, indo atrás apenas de Flamengo e Corinthians, por exemplo. Embora, eu creia que, para players como esse, não seria tão bom iria atrás de apenas dois. O melhor é ter o conjunto. Por exemplo: o Flamengo negocia com a Amazon, e o jogo dele contra o Grêmio no Maracanã ter um grande valor. Porém, o jogo de volta, na Arena, para ela, não teria valor de transmissão.
Em caso de uma negociação conjunta, qual seria o tamanho do saldo para os clubes?
Para o bolo, a MP é positiva, abre mais possibilidades de negociar teu produto. Agora, se negociar individualmente, criará tendência de que as maiores cotas e as maiores empresas irão para os maiores clubes. Esses players, ao perceberem o fracionamento do mercado, buscarão fechar com as principais camisas. Sobrarão para os clubes menores os players mais modestos. O ponto central para os clubes será atuar como parceiros, se juntarem. Se não fizerem isso agora, o produto ficará maluco (para o consumidor encontrá-lo), e o desequilíbrio das cotas aumentará. Esse cenário seria bom para Corinthians e Flamengo, donos das duas maiores torcidas. Podem se juntar e negociar como um bloco. Insisto, os clubes deverão atuar em grupos. Não há um colegiado desde o fim do Clube dos 13. A CBF criou o Conselho Nacional de Clubes para incentivar a união. Só que, nesse cenário, é preciso ver que a CBF tem o interesse dela. Há poucas semanas, contratou o Edu Zerbini, que foi diretor da Fox Sports aqui, para montar a CBF TV. Ela não foi vitaminada para ficar passando filminho. Eles (CBF) querem entrar nessa briga, têm pretensões de entrar nesse business. É preciso ver qual vai ser o interesse da CBF.
Você acredita em aumento significativo de interessados em comprar os direitos?
Olha o que aconteceu com o Esporte Interativo. O grande empecilho era esse (de só poder passar jogos de dois times com os quais tinha contrato). Bloqueava uma partida, bloqueava outra, mas aí os jogos não passavam. A MP facilita a negociação. Nesse cenário, a operação do EI seria mais efetiva, com mais jogos transmitidos. Teríamos o campeonato fatiado, como é em outros lugares do mundo. Como seria? Quer ver Inter e Grêmio nos jogos como mandante, vai em tal plataforma. O torcedor ficaria catando jogos do seu clube. O que tornaria o consumo mais confuso.
Ganhariam força com a MP o canais próprios dos clubes?
Eles ganham mais do que nunca. Os OTTs, como chamamos, são o lance do futuro para os clubes. O torcedor vai pagar direto para o clube, que transmitirá seus jogos. Em um acordo entre as equipes, poderá haver acordo para que possam transmitir também as partidas de volta. Porém, precisamos nos atentar para a questão cultural. Milhões de pessoas ligam na Globo, é habito, é fácil. Isso (de jogos pelos OTTs) vale para uma determinada camada, de maior poder aquisitivo. É um processo, e os clubes precisam correr com isso. O único OTT mais avançado no Brasil é o do Bahia. O Estudiantes, na Argentina, tem um que é muito bom, coloca tudo ali, treino, coletiva, noticiário, reuniões políticas. O maior exemplo é a Barça TV Plus, o OTT que os catalães acabam de colocar no ar. Ele vem em linha com a Barça Studio, que cria conteúdos para o clube. A série Matchday, sucesso no Netflix, foi feita pelo Barça Studio. Os clubes precisam expandir seu alcance para além do campo de jogo.
Você fala de clubes negociarem em blocos. Mas isso já vimos que é impossível. Há outro caminho?
Os clubes têm de sentar à mesa com mais musculatura. Hoje, uns têm mais do que os outros. O Flamengo está fazendo seus movimentos. Os outros precisam aumentar sua musculatura para enfrentá-lo. Como? Os clubes do Nordeste têm a liga deles, estão acostumados a negociar em bloco. Sozinho, você esta ferrado. Os paulistas poderão se juntar, os nordestinos já fazem isso, os outros três cariocas precisarão se unir. O Sul e Minas poderão sentar à mesa juntos, para ter representatividade, fazer frente. A única maneira de fazer o Flamengo recuar é mostrar que é maior do que ele. O Flamengo é grande? Sim, mas é 17% do mercado, Junta Grêmio, Inter, Atlético-MG, Cruzeiro, Athletico-PR, Coritiba e mais algum outro e chega a 20% do mercado. Ou seja, é maior do que o Flamengo.
O que pode-se esperar da votação dessa MP no Congresso?
O Bolsonaro não tem conseguido passar quase nada. Por si só, não tem força. Vamos ver como reagirá a CBF, quem são as partes que virão a perder. A Rede Globo será afetada. Começará uma batalha grupal para ver como isso andará. Os clubes, se fossem bloco, poderiam colocar pressão para aprovar, porque é positivo. O futebol brasileiro precisa sair da adolescência. O digital está chegando. A pandemia o acelerou demais, andamos três anos em três meses. Temos de sair da zona de conforto.