O botânico e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire passou pelo Rio Grande do Sul há dois séculos. Em seus escritos, na forma de um diário, fornece rico retrato da vida na imensidão de campo no extremo sul do Brasil. Entre tantas peculiaridades, no livro Viagem ao Rio Grande do Sul, descreve o cão ovelheiro.
Em 19 de setembro de 1820, depois de passar um mês em Rio Grande, Saint-Hilaire deixou o povoado e pernoitou na estância do tenente José Vieira, na região do Arroio das Cabeças. Lá, observou a criação de ovelhas. Abaixo, reproduzo o que o francês escreveu sobre o cão de pastoreio:
"O Tenente Vieira possui rebanho de ovelhas que, como os demais da região, permanece sempre nos campos, mas é guardado por um desses cães, chama do ovelheiro, de que fala o abade Casal. Eis o que me contou o tenente sobre esses animais. Toma-se um cachorrinho, antes que tenha aberto os olhos, separa-se da mãe, obriga-se uma ovelha a amamentá-lo, e constrói-se-lhe um pequeno abrigo no meio do rebanho. Os primeiros seres vivos que se oferecem à sua vista são os carneiros; o cachorro acostuma-se a eles, toma-lhes afeição e erige-se em seu defensor, repelindo com valentia os cães selvagens e outros animais que os vêm atacar. Habitua-se a vir comer pela manhã e à tarde na estância; além disso, nunca mais abandona o rebanho e, quando as ovelhas se afastam da casa, priva-se até de alimento para acompanhá-las".
O naturalista não descreveu as características físicas do cachorro, mas tudo indica que é ancestral do Ovelheiro Gaúcho, raça reconhecida pela Confederação Brasileira de Cinofilia. Como já contei na coluna, o cão é de estatura mediada, com pelagem densa que o protege do frio no inverno e do calor no verão. O Ovelheiro Gaúcho apresenta grande resistência e agilidade, rústico para encarar a vida rural e sem agressividade com os rebanhos.
A história do cão remonta ao início da ocupação de europeus, com necessidade de cuidar dos rebanhos. A origem da raça ainda gera alguma divergência entre criadores. O certo é que foi uma mistura. O nosso cão gaúcho provavelmente tem entre seus antepassados raças como Rough Collie, Pastor Alemão e Boder Collie. O início pode ter sido com o Cão da Serra da Estrela, trazido de Portugal. Por lei estadual, o Ovelheiro Gaúcho é patrimônio cultural e genético do Rio Grande do Sul.
Saint-Hilaire chegou a primeira vez na província em junho de 1820. Pelo Litoral Norte, veio a Porto Alegre. Depois, desceu para Rio Grande e foi à Cisplatina (atual Uruguai). Ingressou novamente nas terras do atual estado do Rio Grande do Sul e só retornou ao Rio de Janeiro em maio de 1821, embarcando no porto de Rio Grande.
Sobre o relato do viajante francês, o criador Diego Paz, do Canil Santa Terezinha, de Rio Pardo, esclarece que hoje não é mais adotada a prática de colocar ovelha para amamentar filhotes de cães.