O debate não é novo e ressurge toda a vez que emerge um novo capítulo do tão falado inquérito sobre atos antidemocráticos, no Supremo Tribunal Federal. Pode alguém bradar contra a democracia e a favor da volta de um regime de exceção? Quais os limites para que uma manifestação individual não se transforme em incitação a violência?
No episódio de hoje, o pano de fundo é a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL), aliado do presidente Jair Bolsonaro.
A prisão de Daniel inflamou redes bolsonaristas que afirmam que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, atentou contra a liberdade de expressão. Para quem não acompanhou o vídeo, o parlamentar ofende nominalmente ministros do STF e também faz apologia ao AI-5, instrumento de repressão da ditadura militar no Brasil.
Disse o deputado, conforme transcriação do portal poder 360: "Eu queria saber o que que você (Fachin) vai fazer com os generais? Os homenzinhos de botão dourado, lembra? Você lembra do AI-5 . Você lembra. Para. Eu sei que você lembra. Ato Institucional número 5, de um total de 17 atos institucionais. Você lembra. Você era militante lá do PT, partido comunista. Você era da aliança comunista do Brasil. Militante idiotizado, lobotomizado, que atacava militares junto com a Dilma, aquela ladra, vagabunda. Com o multicriminoso Luiz Inácio Lula da Silva, de 9 dedos, vagabundo, cretino, canalha. O que acontece, Fachin, é que todo mundo já está cansado dessa sua cara de filho da puta que tu tem. Essa cara de vagabundo, né".
A manifestação se dirige a Edson Fachin, ministro do STF que reagiu às revelações feitas pelo general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, sobre uma mensagem publicada no Twitter em 2018. Na ocasião, estava prestes a ser julgado um habeas corpus que poderia beneficiar o ex-presidente Lula (o relator era justamente o ministro Fachin).
A mensagem publicada por Villas Bôas foi discutida com a alta cúpula do Exército e soou como ameaça aos ministros da suprema corte. Fachin respondeu, em nota, considerando "intolerável" e "inaceitável" pressão sobre o Poder Judiciário.
Continuou o deputado Daniel, em vídeo, se referindo a Fachin: "Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência, após cada refeição, não é crime". (...) "Fachin, um conselho para você: vai lá e prende o Villas Bôas, rapidão, só pra gente ver um negocinho. Se tu não tem coragem, porque tu não tem, tu não tem culhão roxo pra isso. Principalmente o Barroso, aí que não tem meso. Na verdade ele gosta do culhão roxo. Gilmar Mendes… isso aqui é só [gesticula com os dedos]… Barroso o que que ele gosta? Culhão roxo. Mas não tem culhão roxo. Fachin, covarde. E Gilmar Mendes… é isso que tu gosta, né, Gilmarzão? A gente sabe".
A coluna consultou profissionais do Direito sobre o episódio, que lembraram que a Câmara dos Deputados tem poder para manter ou revogar a prisão. Sobre o ponto específico da liberdade de expressão, o advogado Fabiano Machado da Rosa observa dois aspectos importantes:
— No caso da ordem de prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira, determinada liminarmente pelo Ministro Alexandre de Moares, dois aspectos precisam de nossa máxima atenção: primeiro, que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, portanto, pode e deve ser limitada quando utilizada para atacar os Direitos Fundamentais e Democracia; em segundo ponto, demonstra que a internet não é um território sem lei e que incitação à violência e extremismos serão coibidos com a força da lei. Vimos, no caso recente da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, como o extremismo nas redes pode ganhar as ruas e minar a Democracia.
O advogado criminalista e professor de Direito da PUCRS, Marcelo Peruchin, também se manifestou nesta direção, em entrevista à Rádio Gaúcha:
— O entendimento do STF, aqui no Brasil, é de que não há direito absoluto, nem mesmo a liberdade de expressão seria um direito absoluto. Então, quando eventualmente ocorra a manifestação de opinião que configure a prática de crime, é possível a restrição desse direito — explicou.
Ainda sobre a prisão, Peruchin lalerta sobre outra discussão que se imporá a partir do entendimento do ministro do STF Alexandre de Moraes, quanto ao "flagrante". É que um deputado federal só pode ser preso no exercício do mandato se houver "flagrante de crime inafiançável". No caso de Daniel, o magistrado interpretou que a exposição de um vídeo nas redes sociais configurava o flagrante, já que o material permanece disponível "em infração permanente".
Disse Moraes, na decisão: "As condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois na verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos. Relembre-se que, considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la. Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar DANIEL SILVEIRA, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante".
A partir daí, o debate está posto: a exposição de um vídeo pode configurar um flagrante, como entendeu o ministro Alexandre de Moraes? A Câmara dos Deputados, que deliberará sobre o tema, também vai entrar na discussão. O impasse está longe de terminar.