Politizar a pandemia já não é novidade no Brasil. Desde o início do avanço do coronavírus, o presidente da República, Jair Bolsonaro, se posicionou de maneira pouco responsável, como se estivesse numa cruzada contra os governadores, tumultuando estratégias que incluíram medidas restritivas adotadas (pelo mundo inteiro) como forma de proteger a população.
Não satisfeito, Bolsonaro viajou país afora, aglomerando-se entre apoiadores, e chegou a erguer uma caixa de cloroquina como uma espécie de remédio milagroso contra o vírus, no município de Bagé.
Dois ministros da área médica não aceitaram continuar no governo e pediram as contas. O terceiro, elogiado pelo diálogo junto aos governadores, foi desautorizado pelo próprio presidente ao anunciar a compra de um lote de vacinas cujos estudos são desenvolvidos pelo reconhecido Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo. Com o rabo entre as pernas, o ministro posou ao lado do chefe e se desculpou: "aqui um manda, outro obedece".
Como se fosse pouco, o presidente protagonizou mais uma das suas peripécias, demonstrando pouco ou nenhum apreço pela seriedade na gestão de uma pandemia. Em mensagem publicada nas redes sociais, Bolsonaro celebrou uma "vitória" sobre o governador de São Paulo, João Doria — seu desafeto e possível adversário em 22 —, já que a Anvisa determinou a interrupção dos testes em andamento.
"Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", escreveu, em resposta a um seguidor.
Cabe lembrar: a interrupção foi anunciada pela Anvisa nesta segunda-feira (10) em razão de um efeito adverso em um voluntário. Ocorre que na nota emitida na noite de ontem, a Anvisa não especificou qual "efeito" foi verificado no caso em questão — sabe-se pelo Butantan que um voluntário morreu, porém não há nenhuma evidência que a morte esteja relacionada à aplicação do imunizante.
À imprensa, o Instituto Butantan afirmou que foi surpreendido com a decisão e que está apurando em detalhes o que houve com o andamento dos estudos clínicos da Coronavac. O diretor geral do Butantan, Dimas Covas, afirmou à TV Cultura que recebeu a informação com estranheza.
- Como são mais de 10 mil voluntários nesse momento, podem acontecer óbitos. Nesse momento, [o voluntário] pode ter um acidente de trânsito e morrer. (...) A Anvisa foi notificada de um óbito, não de um efeito adverso. Isso é diferente. Nós até estranhamos um pouco essa decisão da Anvisa, porque é um óbito não relacionado à vacina - declarou Covas na TV Cultura.
Carece de profundo esclarecimento a decisão da Anvisa, a partir da desconfiança dos gestores e do diretor-presidente do Butantan. É inacreditável precisar dizer isso, mas a interrupção de um estudo de um imunizante jamais deve obedecer a pressões políticas, por parte de quem quer que seja. Há milhares de profissionais envolvidos em estudos sérios, que buscam acima de tudo salvar vidas e proteger a população.
Ao celebrar seu trunfo sobre "a vacina do Doria", o presidente volta a atuar com irresponsabilidade e num ato desumano, que desconsidera a esperança de milhões de pessoas que aguardam ansiosamente a chegada de uma vacina. Enquanto Bolsonaro canta vitória, perdemos todos.