Você tem um minuto para responder, sem espiar no celular (não vale trapacear): quantos números de telefone sabe de cor? Dois, três? Ou nem isso?
Até hoje lembro de dígitos da era pré-internet. O contato de casa era 711-3777. O da minha avó, 713-2641. Recordo do som do disco do aparelho girando, levado pelo dedo indicador, e de tagarelar com as amigas de infância, cujos telefones fixos jamais esqueci. Nenhum desses números existe mais, mas seguem guardados como tesouros arqueológicos inúteis.
Naquela época, a gente memorizava tudo. No máximo, consultava uma agenda de papel aos frangalhos, do tamanho da palma da mão, que ficava na mesinha da sala.
Aí veio a revolução digital, com Apple, Microsoft e todas as bigtechs. Surgiram o Motorola tijolão, o Nokia tijolinho e o Blackberry com suas teclas mínimas. Em menos de 20 anos, com a chegada dos smartphones e de suas funcionalidades sem fim, as marcas passaram a ser extensões do nosso corpo. Os dispositivos servem até para telefonar, só que hoje ninguém mais precisa disso. Falar para quê?
A tecnologia mudou o mundo e a forma como nos relacionamos com ele. Tudo ficou mais fácil. Deixou de ser necessário guardar informações “na caixola”, como diria minha avó (aquela mesma, do 713-2641), e passou a ser possível terceirizar a memória. Ganhamos HDs externos. Qual é o sentido de perder tempo memorizando algo, se temos tudo na palma da mão?
Hoje, a vida de uma pessoa cabe no celular. A agenda de telefones é só uma gota no oceano de bites.
Os contatos estão ali, assim como a conta do banco, a lista do super, o endereço do dentista, a tese de doutorado, as datas de aniversário das pessoas que amamos, o roteiro das férias, o aplicativo de rotas com GPS, os ingressos para o teatro. O que não sabemos (ou esquecemos?) está no Google ou no ChatGPT. Basta digitar e pronto. Resolvido em segundos.
O resultado disso é uma vida muito mais prática, mas um bando de gente sequestrada pelo próprio celular, como já escreveu a Martha Medeiros em uma de suas crônicas geniais. Viramos "celular-dependentes", e a nossa memória também.
Dia desses, consegui a façanha de esquecer o aparelho em um veículo da Uber. Percebi segundos depois, quando fui checar as mensagens e quase enlouqueci de mãos vazias. Bateu o desespero. E agora?
Não sabia o número de ninguém, não tinha acesso ao Whats, não podia sequer ver as horas nem verificar o e-mail. Para quem ligar para tentar resolver o perrengue?
Graças a uma colega que (ufa!) não tinha esquecido o celular no carro, foi possível fazer contato com a empresa e chegar até o motorista. Ele voltou mais tarde para devolver o item perdido.
Foram os 45 minutos mais agonizantes dos últimos tempos. E ali percebi meu vício em tecnologia. Sem o smartphone, a vida travou, e a terceirização da memória se tornou um problemão.
Virou amnésia digital.
Sabe o que fiz depois disso? Nada. Ou melhor, fiz, sim: decorei três contatos de pessoas próximas para o caso de emergências. Estou salva. Até ser traída pela memória outra vez.