Assim que a água subiu, levando vidas e memórias, cobrindo áreas extensas, inclusive zonas urbanas populosas nunca antes atingidas, duas frases viralizaram no mundo virtual e na vida real: “civil salva civil” e “o povo pelo povo”.
O heroísmo, a dedicação e a força dos voluntários foram e continuam sendo imensos. Sem o apoio dessas pessoas, em sua maioria gente anônima movida por um desejo genuíno de ajudar, a tragédia que vivemos seria, com toda a certeza, muito pior. Infinitas vezes maior.
Só que, por trás das frases lacradoras que fazem tanto sucesso nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, há uma armadilha retórica — e palavras têm força.
Quando alguém estufa o peito para gritar, em uma live ou seja onde for, “civil salva civil”, está, de certa forma, dizendo que o Estado não só é desnecessário (“o povo cuida do povo”) como é melhor que fique longe e não atrapalhe.
É um discurso fácil, tão sedutor quanto falacioso. E é o mesmo por trás das tantas fake news que disseminam a ideia de insurgência, com ataques recorrentes às instituições, alçando o “cidadão comum” à categoria de único digno de confiança.
A presença do Estado, especialmente em uma catástrofe, é essencial. Que fique entendido: o Estado é, também, o brigadiano, a médica, o assistente social, a merendeira, o professor, o servidor público pago para exatamente isso: prestar serviço a todos nós.
Estado também são os governos e os políticos eleitos. Eles falharam? Sim, muitos deles, e estão sendo cobrados por isso — basta ver o caso da prefeitura de Porto Alegre, enredada nas falhas de manutenção do sistema de proteção contra enchentes.
Podemos, por isso, prescindir do Estado? Não, ao contrário. Vivemos um momento-limite, em que o voluntariado já não aguenta mais, não pode mais. Os abrigos estão começando a perder braços, porque os apoiadores também têm de retomar sua vida, seu trabalho. O povo, sozinho, não vai conseguir vencer todos os desafios pela frente. O Estado precisa e deve fazer a sua parte. Agora, mais do que nunca.