A obsessão de deputados estaduais em torno do belo hino rio-grandense, ou melhor, do desejo de dificultar qualquer alteração neste e em outros símbolos do Rio Grande do Sul mereceria um estudo. Como eles, reconheço a beleza da melodia e faço questão de cantar seus versos em solenidades e eventos, o que não significa transformar a letra em tabu.
Primeiro, porque o Rio Grande do Sul já teve três hinos diferentes desde 1838 e a versão atual inclusive foi modificada em 1966 para a retirada de trecho um polêmico, como mostra o repórter Gabriel Jacobsen em reportagens publicadas em GZH. Ninguém "morreu" por causa disso e, hoje, muita gente sequer sabe desse histórico, o que não diminuiu em nada o "orgulho de ser gaúcho" e o hábito de vocalizar o hino a plenos pulmões.
Em segundo lugar, porque existe um motivo de contrariedade na letra atual entre a população preta do Estado, externada pela bancada negra na Assembleia. O trecho em questão diz que "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". A controvérsia não é nova. Em janeiro de 2021, vereadores negros da Câmara de Porto Alegre já haviam protestado contra o verso na cerimônia de posse.
Desde então, há quem diga que as críticas não merecem atenção porque se embasam em uma interpretação equivocada do verso em questão. Coincidentemente ou não, quem diz isso tem a pele branca.
Qualquer pessoa pode e deve se somar à luta por igualdade e contra qualquer tipo de intolerância, inclusive de raça e de cor. Um branco, mesmo sem nunca ter sentido na pele esse tipo de preconceito, pode e deve lutar contra o racismo. Mas só quem é preto sabe, de fato, o que é ser discriminado por um motivo tão banal quanto esse. E é por isso que precisamos ouvi-los, inclusive sobre o hino.
Se um negro se sente mal com a frase em questão, por que não alterar?
O verso "povo que não tem virtude acaba por ser escravo" poderia, simplesmente, ser adaptado para “povo que não tem virtude, acaba por escravizar”, sem qualquer prejuízo à linda melodia. Seria uma reparação histórica, um ato de grandeza.
O projeto foi aprovado em primeiro turno nesta terça-feira (11). Com isso, será mais difícil alterar qualquer vírgula no hino, mas não duvido que a decisão acabe por fermentar o movimento em favor da mudança.