O tema do transplante de fezes - objeto de estudo de pesquisadores de Harvard, como destaquei em GZH na última quarta-feira (6) - segue repercutindo. À frente do Serviço de Gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o professor Mário Reis Álvares-da-Silva traz mais elementos para o debate.
Em e-mail enviado à coluna, o médico hepatologista, coordenador substituto do Programa de Pós-Graduação em Gastroenterologia e Hepatologia da UFRGS, diz que a microbiota intestinal, de fato, é um tema promissor e capaz de revolucionar o tratamento de doenças, mas faz ressalvas importantes.
Segundo o especialista, o procedimento ainda tem indicação “bastante limitada na prática clínica”. Embora já venha sendo realizado no HCPA, isso ocorre em situações específicas. Ou seja: o transplante não deve ser visto como panaceia - até porque ainda há um longo caminho científico pela frente.
A microbiota fecal tem sido alvo, inclusive, de estudos na UFRGS, motivando teses de doutorado e dissertações de mestrado.
No caso da Universidade de Harvard, uma das instituições de ensino mais respeitadas do mundo, com sede nos Estados Unidos, cientistas estão propondo a criação de bancos de fezes humanas, pois acreditam que transplantes de microbiota fecal podem ajudar a tratar uma série de doenças e até retardar o envelhecimento.
Leia a íntegra do e-mail enviado pelo dr. Mário Reis Álvares-da-Silva à coluna:
Prezada Juliana Bublitz
Li, com interesse, a nota de sua coluna publicada hoje em ZH, a respeito de microbiota intestinal.
Sou médico hepatologista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, chefe do Serviço de Gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e ex-coordenador e atual coordenador substituto do Programa de Pós-Graduação em Gastroenterologia e Hepatologia da UFRGS. A reportagem, com informações do Dr. Pedro Schestatsky, querido colega e ex-professor de Neurologia da nossa Universidade, merece, a meu ver, um contraponto. Explico por quê:
a) a microbiota intestinal é uma área de pesquisa bastante promissora que deve revolucionar o entendimento e a terapêutica de várias enfermidades, mas o transplante de fezes ainda tem indicação bastante limitada na prática clínica e não deve ser divulgado como uma panaceia;
b) não há preconceito algum em relação à microbiota intestinal no meio acadêmico especializado, sendo esse um tema recorrente em congressos médicos. Em nosso serviço no HCPA, o transplante de fezes é realizado, há alguns anos, em situações específicas;
c) o estudo da microbiota representa importante área de pesquisa no PPG Gastroenterologia e Hepatologia da UFRGS, com resultados muito significativos, tanto em modelos experimentais, como em humanos, tendo sido motivo de teses de doutorado e dissertações de mestrado de vários alunos. Assim, não posso concordar com a informação geral de que "há desdém entre os médicos" em relação ao tema. Listo alguns estudos do meu grupo de pesquisa publicados em revistas internacionais na área (10.1016/j.cgh.2021.03.045; 10.4254/wjh.v13.i12.2052; 10.2147/CEG.S262879; 10.1080/07315724.2019.1627955) e o recente consenso brasileiro em microbiota intestinal, do qual fiz parte (10.1590/S0004-2803.202000000-72);
d) é importante relatar que há riscos ainda não bem estudados em relação ao transplante de fezes. Os inúmeros estudos em andamento em todo o mundo provavelmente trarão em breve informações valiosas a esse respeito.
Confesso que também sou um entusiasta da microbiota, como o Dr. Pedro, mas no momento o entusiasmo deve ser modulado, para que evitemos levar à população a promessa de um tratamento que carece de evidências mais conclusivas.
Atenciosamente,
Prof. Dr. Mário Reis Álvares-da-Silva
Chefe Serviço de Gastroenterologia
Hospital de Clínicas de Porto Alegre