Cientistas de uma das instituições de ensino mais respeitadas do mundo, a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, estão propondo a criação de bancos de fezes humanas. Isso mesmo: os pesquisadores acreditam que transplantes de microbiota fecal podem ajudar a tratar uma série de doenças e até retardar o envelhecimento.
A notícia é recebida com entusiasmo pelo médico gaúcho Pedro Schestatsky (leia a entrevista abaixo), PhD em Neurologia em Harvard e autor do livro Medicina do Amanhã - que, não por acaso, dedica um capítulo inteiro ao intestino. Integrante do quadro clínico do Hospital Moinhos de Vento, na Capital, Schestatsky, que foi professor da UFRGS por 10 anos, vem estudando esse tipo de tratamento para males como Alzheimer, esclerose múltipla e Parkinson.
Em 2018, quando o Hospital Ernesto Dorneles, em Porto Alegre, sediou o primeiro transplante fecal da América Latina para síndrome do intestino irritável, o neurologista foi o receptor (à época, GZH inclusive publicou uma reportagem sobre o tema). Parece inusitado, mas pesquisas indicam que pessoas acometidas por uma série de enfermidades (de asma a doenças autoimunes) podem se beneficiar dessa terapia, que ainda é alvo de preconceito e de comentários muitas vezes jocosos.
– No Rio Grande do Sul, já temos bastante gente estudando o tema. A maioria são pesquisadores da área da microbiologia. Entre os médicos, ainda há um certo desdém, por isso a chancela de Harvard, onde estudei em 2012, é importantíssima. A ciência finalmente está se curvando ao papel do intestino – celebra Schestatsky.
Órgão de ouro
Cerca de 90% dos neurotransmissores cerebrais, como a dopamina, a serotonina e a noradrenalina (que compõem a maioria dos antidepressivos), são produzidos no intestino - chamado de “segundo cérebro”. É por isso, segundo Schestatsky, que alguns pesquisadores apostam no transplante de fezes até mesmo para tratar casos de depressão e ansiedade.
Melhor do mundo
A tribo Hadza, que vive no norte da Tanzânia, na África, tem a fama de possuir o “melhor cocô do mundo”. De acordo com Schestatsky, o grupo é fonte de estudos pela diversidade e eficiência do microbioma intestinal. Isso é resultado de hábitos alimentares milenares, baseados no consumo de caça (animais selvagens) e na coleta de frutos silvestres e tubérculos.
"O transplante de fezes pode beneficiar muita gente", projeta Schestatsky
Como o senhor avalia essa aposta de Harvard no cocô?
Fico muito feliz ao ver que a ciência finalmente está reconhecendo o intestino como um dos órgãos mais importantes do nosso corpo. É o nosso órgão maestro, o órgão de ouro. Não se trata apenas da conexão entre o intestino e o cérebro. Ele está conectado a tudo, por isso é tão importante cuidarmos dele. Quando analisamos os cocôs de idosos centenários, por exemplo, percebemos que são mais diversificados, ao contrário de quem só se alimenta com produtos industrializados, o que abre portas para o maior inimigo do ser humano: inflamação no corpo inteiro. O assunto é palpitante, mas ainda temos muito a aprender sobre ele.
O senhor inclusive já recebeu um transplante de fezes e até foi tema de reportagem em ZH, há quatro anos. Como foi?
Foi uma experiência muito importante, uma prova de conceito, de mostrar que o procedimento é seguro e que pode, de fato, trazer bons resultados além de gastrointestinais. No RS, já temos bastante gente estudando o tema. A maioria são pesquisadores da área da microbiologia. Entre os médicos, ainda há um certo desdém.
A aposta de Harvard pode mudar isso?
Sem dúvida. A chancela de Harvard é importantíssima. É uma universidade que conta com algumas das maiores mentes do mundo, então não é pouca coisa. O transplante de fezes pode beneficiar muita gente com patologias intestinais e extra-intestinais, como asma, diabetes, doenças autoimunes etc.