Fique à vontade para rir ao ler as próximas linhas, mas não deixe que seu humor escatológico comprometa a seriedade com que se deve tratar do tema. Estamos falando do transplante de microbiota fecal. Sim, é isso mesmo: transplante de fezes.
Sábado passado (30), Porto Alegre sediou o primeiro transplante fecal da América Latina para o tratamento do diabetes. O procedimento foi realizado no Hospital Ernesto Dorneles (HED), sob o comando do médico gastroenterologista Guilherme Becker Sander, chefe do Serviço de Endoscopia do HED, em um paciente que tem especial apreço pelo assunto: o também médico Pedro Schestatsky, diabético e professor de neurologia da Faculdade de Medicina da UFRGS que se dedica ao estudo desse tipo de tratamento para atacar males neurológicos, como Alzheimer, esclerose múltipla, autismo e Parkinson.
O transplante é relativamente simples (veja o vídeo acima). O doador precisa ter uma boa microbiota, nome pomposo para o que se conhecia popularmente como flora intestinal. Trata-se de um conjunto de microrganismos – algo em torno de 100 trilhões de bactérias – que faz nosso intestino funcionar sem sobressaltos. São as bactérias do bem que nos habitam. No caso de Schestatsky, ele escolheu um doador vegano, que passou por baterias de exames de sangue e fezes para atestar a qualidade do material que doaria. Mas o veganismo não é pré-requisito. Observa-se uma gama de fatores no doador, como a presença de bactérias perigosas, como salmonela, e os hábitos gerais de vida. O receptor também passa por uma preparação, semelhante à exigida a quem vai se submeter a um exame de colonoscopia. São dois dias tomando laxativos para “zerar” a microbiota. É como esvaziar o intestino de bactérias ruins para substituí-las pelas boas.
Mas o que o intestino tem a ver com diabetes? Pesquisas em diferentes áreas têm demonstrado o papel do órgão nas infecções e nas inflamações sistêmicas e em outros quadros de saúde desequilibrados e a gigantesca conexão dele com o cérebro, o que já fez com que fosse chamado de “segundo cérebro”. Acredite: 90% dos neurotransmissores cerebrais, como a serotonina, a noradrenalina e a dopamina – os mesmos que estão contidos nos antidepressivos –, são produzidos no intestino, abrindo a possibilidade para o uso dessa técnica para casos de depressão e ansiedade.
40 mil mortes evitadas por ano
Uma boa flora intestinal está associada a um sistema imunológico mais forte, e a transferência de microbiota já tem se mostrado eficiente em certos casos. No tratamento da colite pseudomembranosa, um quadro de diarreia grave provocado pela superbactéria Clostridium difficile, resistente a antibióticos, o transplante de fezes se mostrou 100% eficiente, evitando cerca de 40 mil mortes por ano no mundo, 14 mil no país. O problema é uma das principais causas de doenças em pacientes internados na rede hospitalar. Pesquisadores da Universidade do Arizona também observaram, em um ensaio aberto, que os sintomas do autismo sofreram significativa melhora após a transferência de microbiota nos pacientes.
Apesar de um histórico indicativo de um futuro promissor a favor da saúde, o transplante de fezes ainda sofre estigmas, um dos alvos de Schestatsky quando encarou o desafio para tratar seu diabetes.
– As pessoas ainda pensam que é comer cocô. A partir dessa experiência, quero provar a segurança do procedimento e demonstrar a dinâmica disso para que possa ser oferecido a pacientes de casos extremos – diz o neurologista.
As possibilidades de tratamento via transplante de fezes ampliam-se dia a dia. Tanto é que já existem bancos de fezes. No Brasil, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) abriu o primeiro espaço desse tipo para armazenar o material doado, que fica a uma temperatura de 80°C negativos e precisa ser utilizado em até seis meses. O problema é que para se tornar um doador é preciso aprovação em todos os testes que asseguram a qualidade das fezes e muitos candidatos não conseguem passar nessa seleção.
Schestatsky acredita que o procedimento realizado no Ernesto Dornelles ajudará a coroar o intestino como causa de inflamações e doenças crônicas. No caso dele, os resultados positivos já aparecem na busca por reduzir a medicação contra o diabetes.
– Meu perfil glicêmico melhorou significativamente nas primeiras horas. Ficamos todos muito empolgados. Paralelamente, meu sono nos dois últimos dias está quase normal, provavelmente pela ação do transplante sobre o eixo intestino-cérebro – avalia.
O neurologista é um entusiasta do procedimento. Em outros experimentos, a técnica se mostrou eficaz contra a obesidade e em tratamento de autistas, que apresentaram melhora significativa na socialização e no contato visual, duas carências de quem têm o espectro.
O transplante é para casos em que mudanças de hábito e outras opções de tratamento já foram testadas e descartadas.
– O tom ainda é muito jocoso (para falar do transplante), mas é, sem dúvida, uma terapia séria que tem marcado efeito. Muita coisa ainda será descoberta – aposta Sander.
O melhor cocô do mundo
Entre a maioria dos mortais de vida moderna existe uma grande dificuldade para se manter hábitos saudáveis, mas uma tribo distante da África gaba-se de ser fonte de estudos e pesquisas por conta da diversidade e eficiência do microbioma. O povo hadza é um dos poucos no mundo que mantêm há cerca de 10 mil anos hábitos alimentares baseados no consumo de caça e na coleta de frutos silvestres e tubérculos.
A flora intestinal de seus integrantes é invejável e suscita uma espécie de turismo escatológico e científico sobre o povo. Digamos que eles são os detentores de um dos melhores, senão o melhor, cocô do mundo. A microbiota dessa tribo milenar da Tanzânia é rica em bactérias do bem e está associada a uma melhor imunidade.