Eles chegam para colonizar nosso corpo desde que nascemos. Somos uma morada gigantesca e acolhedora onde podem crescer, alimentar-se e se reproduzir. São microrganismos como bactérias, vírus e protozoários que carregamos por toda a vida. O conjunto deles é chamado de microbiota e tem o poder (ainda pouco conhecido) de mexer com a nossa saúde.
Cientistas estimam que o corpo humano carrega milhares de espécies desses microrganismos, em sua maioria bactérias. Somados, eles representam aproximadamente um quilo do peso de um adulto. Apesar de "leves", a importância desses seres microscópicos na nossa vida é imensa: pesquisadores estimam que temos mais células de micróbios que as nossas próprias no organismo.
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Somos ainda mais insignificantes se levarmos em conta os genes microbianos que hospedamos: cem vezes mais do que os nossos. Isso equivale a dizer que somos feitos 99% de genes microbianos e apenas 1% genes humanos.
Mas esses microrganismos não estão em todas as partes do nosso corpo. Habitam somente órgãos que tenham contato com o ambiente externo, como pele, olhos, boca, tratos respiratório, gastrointestinal e geniturinário. A maioria dos micróbios mora no trato gastrointestinal (70%), o mais estudado até hoje.
A população de seres microscópicos que habitam nosso corpo pode ser influenciada por fatores como microbiota materna, tipo de parto em que nascemos, higiene, idade, alimentação, exercício físico, genética, medicamentos e estado hormonal. Sem deixar por menos, eles influenciam o estado nutricional, comportamento e suscetibilidade a doenças – isso porque interferem na digestão, na assimilação de nutrientes, na síntese de vitaminas e na formação do sistema imunológico.
Embora a existência de micróbios no nosso corpo seja conhecida desde que o holandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723) descobriu grande número de minúsculos seres vivos em um raspado da superfície de um dente – ao observá-lo em microscópio –, os estudos sobre o papel da microbiota ainda são muito recentes. De 1990 a 2009, as publicações anuais sobre o tema saltaram de cem para 500, aproximadamente.
Por isso, não há muitas comprovações sobre a influência da população microscópica. Estudos indicam a associação da microbiota com doenças intestinais, câncer, obesidade, diabetes, alergias respiratórias, doenças psiquiátricas e até autismo. Os problemas ocorreriam quando o conjunto dos nossos micróbios é afetado ou alterado.
A questão é que os cientistas ainda não sabem definir o que é uma microbiota saudável para poder produzir tratamentos. Doutor em Microbiologia e pesquisador em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luis Caetano Martha Antunes afirma que esse é um grande desafio de quem estuda o tema.
Quando isso for definido, o pesquisador aguarda um futuro com coquetéis de bactérias para tratar doenças relacionadas à microbiota.
Cesárea altera micróbios e aumenta risco de obesidade
A relação entre o corpo humano e esses microrganismos começa no momento do nascimento. Durante o parto normal, o bebê é colonizado pelas bactérias presentes na vagina da mãe. Já a cesariana estimularia o crescimento de micróbios que entram em contato com a pele da criança, o que faz com que ela tenha uma microbiota diferente. Divulgada há cerca de dois anos, uma revisão de 15 estudos envolvendo
163.796 pessoas mostrou que nascidos pela cirurgia tinham um risco 26% maior de ter sobrepeso e 22% maior de se tornar um adulto obeso por causa dessa alteração na microbiota.
A gastroenterologista pediátrica Helena Ayako Sueno Goldani, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, apontou a tendência à obesidade de bebês que nasceram por cesariana em um artigo publicado em 2011 pelo The American Journal of Clinical Nutrition. O estudo levantou a hipótese de que as bactérias presentes no canal vaginal da mãe poderiam afetar positivamente o metabolismo.
Em abril deste ano, a pesquisadora publicou um novo artigo sobre o tema, que acrescenta outro fator à tese. Ao comparar fezes de nascidos por cesárea e parto normal, o trabalho mostrou que não há grandes alterações nas bactérias.
– Investigamos as mães das crianças e vimos que, quando a mulher é obesa antes de engravidar, isso influencia na microbiota da criança. A nossa conclusão é de que devemos olhar também para o peso materno antes da gestação, não apenas para o tipo de parto – afirma.
Alimentos gordurosos favorecem bactérias "do mal"
Publicado em 2013 pela revista Science, um estudo desenvolvido pela equipe do pesquisador norte-americano Jeffrey Gordon, da Universidade de Washington, mostrou que as bactérias presentes em nosso intestino influenciam no metabolismo. No trabalho, camundongos que receberam em seu intestino bactérias do intestino de pessoas obesas ganharam mais peso do que aqueles que tiveram injetados micróbios de indivíduos magros, seguindo a mesma dieta.
Para determinar quais microrganismos impediram o ganho de peso, os pesquisadores confinaram os roedores obesos e magros na mesma gaiola, onde começaram a consumir os excrementos uns dos outros – transmitindo entre si bactérias da microbiota intestinal. Após cerca de 10 dias, os cientistas descobriram que os animais acima do peso tinham desenvolvido os mesmos traços metabólicos dos magros. Já bichos em forma não foram afetados pelos micróbios intestinais de seus companheiros de cela. Enquanto bactérias do filo Bacteroidetes conseguiram entrar no intestino dos camundongos obesos e provocar mudanças em seu metabolismo, nenhuma das bactérias dos roedores gordos conseguiu invadir o intestino dos magros.
Em seguida, os cientistas alimentaram esses animais com o equivalente a duas dietas modernas: a primeira rica em fibras e pobre em gorduras saturadas e a segunda, pobre em fibras e rica em gorduras. Quando submetidos a um regime saudável, os roedores obesos adquiriram boas bactérias intestinais, modificando seu metabolismo. Mas quando os dois grupos de ratos foram alimentados com uma dieta pobre em fibras e rica em gordura saturada, os obesos não conseguiram adquirir as bactérias intestinais que impedem o ganho de peso, e os magros não conseguiram mantê-las no intestino. Ou seja: a dieta desequilibrada muda a nossa microbiota para pior.
Uma das organizadoras do livro Microbiota Gastrintestinal – Evidências da sua Influência na Saúde e na Doença, a professora do Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Maria do Carmo Gouveia Peluzio afirma que nossa microbiota é habitada tanto por bactérias benéficas quanto não benéficas, que vivem em equilíbrio. No entanto, a má alimentação pode desregular a harmonia entre elas e favorecer o desenvolvimento de doenças como obesidade, diabetes e câncer. Isso porque as bactérias boas metabolizam comidas saudáveis, e as más se alimentam de gordura. Quando comemos apenas alimentos gordurosos, estamos multiplicando a população de micróbios ruins no nosso organismo.
– A formação das doenças crônicas começa por causa dessa alteração, quando nosso intestino vai sendo colonizado por bactérias patogênicas, em vez de benéficas – explica a professora.
Dieta para ajudar os microrganismos
Depois da descoberta de que a microbiota altera o funcionamento do metabolismo e de que cuidar das nossas bactérias pode ser uma forma de tratamento para várias doenças, diversos pesquisadores passaram a estudar o uso de prebióticos e probióticos na alimentação.
Os prebióticos são fibras não-digeríveis, que funcionam como alimento para as bactérias benéficas. São encontrados em alimentos como frutas, vegetais, grãos, sementes e cereais.
A ingestão ideal de fibras varia de 20 a 30 gramas por dia. Já os probióticos são as próprias bactérias do bem, comumente adicionadas às bebidas lácteas ou iogurtes.
– O consumo de prebióticos e probióticos melhora o trânsito intestinal e pode provocar perda de peso. Também melhora a qualidade do sono e a disposição. Temos estudos com animais que mostram ainda a redução da pressão e da glicose – explica a professora da UFV Maria do Carmo Gouveia Peluzio.
Também é possível encontrar prebióticos ou probióticos em medicamentos. O problema é que, tanto naturais quanto em remédios, o efeito deles é "passageiro", o que exige um consumo frequente. Além disso, para algumas pessoas, eles não produzem o resultado desejado.
Antibióticos podem desregular microbiota
A pesquisadora indica o consumo de prebióticos e probióticos após a ingestão de antibióticos. Como esses medicamentos são capazes de matar a microbiota, os prebióticos e probióticos podem ser usados para reconstrução da nossa população de bactérias.
Contraindicado justamente por afetar nossos microrganismos, o uso de antibióticos com frequência pode favorecer infecções oportunistas. Um exemplo é a reprodução de uma bactéria patogênica chamada Clostridium difficile, resistente a medicamentos. Como os antibióticos acabam matando as bactérias boas, pode sobrar espaço para a malvada se multiplicar, causando uma infecção que pode ser fatal: a colite pseudomembranosa.
Transplante de fezes é opção de tratamento
Como o tratamento com antibióticos muitas vezes é ineficiente para a Clostridium difficile, nesses casos é indicado o transplante fecal.
A prática consiste na transferência da microbiota presente nas fezes de um indivíduo saudável para o doente, por meio de sonda nasogástrica, endoscópio, colonoscopia ou enema. Professor do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), Christian Hoffmann afirma que o índice de cura com o primeiro transplante é de ao menos 80%, chegando a 100% com um segundo transplante, quando necessário.
Nos Estados Unidos, pesquisadores chegaram a produzir um banco de fezes, chamado Open Biome, que criou uma cápsula contendo a microbiota. O medicamento pode substituir o transplante.
Bactérias regulam sistema imunológico
Além de auxiliar na digestão, a microbiota funciona como uma professora para o nosso sistema imunológico. Como os microrganismos mostram substâncias às nossas células imunológicas, elas podem conhecer o que não é ligado a doenças, reagindo apenas nos casos necessários.
– Nosso sistema imunológico não nasce pronto, ele passa por um processo de aprendizado nos primeiros anos de vida, entrando em contato com as bactérias do ambiente e da microbiota, para entender o que não é patológico – explica Christian Hoffmann, professor da USP.
É como se a microbiota tivesse a função de regular a atividade do sistema imune, por isso, há estudos relacionando doenças resultantes da alta atividade imunológica como rinite e asma com as alterações na nossa população de microrganismos. Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Faculdade de Medicina do ABC, a especialista em alergia e imunologia Márcia Carvalho Mallozi explica que qualquer alteração da microbiota que mostre redução de bactérias benéficas ou aumento das patogênicas pode provocar doenças em pessoas geneticamente suscetíveis.
– A microbiota ajuda a produzir substâncias que interferem na produção de células de defesa – afirma Márcia.