Depois de quase sete horas de música e narrativa, a última cena do documentário Uma Viajante Alma Paulistana mostra Guilherme Arantes hoje, caminhando na mesma rua em que apareceu na capa do primeiro disco, 40 anos atrás. Com esse simbolismo, o compositor que foi um dos maiores hitmakers da música brasileira quer dizer que está pronto para começar de novo. Dividido em três DVDs, o documentário é a autobiografia artística de Guilherme, que decidiu fazê-la assim, com voz e música, em vez de escrever um livro. Decidiu também que não entraria em intimidades pessoais que pudessem interessar “a um olhar voyeur”. As filmagens foram feitas em maioria no estúdio Coaxo do Sapo, no litoral de Salvador, onde ele vive desde 2000. Mas há muitas cenas externas.
No Coaxo do Sapo, que também é um selo discográfico, Guilherme tem todos os seus teclados, de um Steinway de cauda a um venerável Minimoog analógico, passando pelo Yamaha CP-70 e, entre outros, um órgão Hammond e um cravo. Além desse acervo, vai usando e mostrando os efeitos de diferentes máquinas de som, nas quais é um expert. Mas tudo pautado pela música, claro. Ao contrário do que se poderia esperar, o documentário não tem videoclipes das várias fases da carreira e as imagens e filmes antigos são raros. Guilherme preferiu cantar tudo, cerca de 90 canções, de Meu Mundo e Nada Mais (1976) à recente Oceano de Amor, passando por Amanhã, Êxtase, Deixa Chover, Aprendendo a Jogar, Planeta Água, Pedacinhos, Lindo Balão Azul, Cheia de Charme...
Ele fala sobre cada música e a circunstância em que foi criada. No caso de Aprendendo a Jogar, por exemplo, lançada no derradeiro disco de Elis, conta em detalhes como foi o encontro dos dois e o que isso significou para ele. Na verdade, TUDO é lembrado em detalhes. Os três DVDs estão divididos em sete “temporadas”, sendo a primeira de 1974 a 1977 e a última de 2001 a 2016. Fiz um monte de anotações e praticamente não as uso aqui porque é impossível resumir a história. Tem que ver e ouvir. Do compositor recordista de músicas em telenovelas ao cidadão que mantém uma ONG de acolhimento e educação de crianças carentes na Bahia, a personalidade de Guilherme Arantes é mesmo um mundo. O documentário surpreende a cada cena pela memória e a visão crítica.
Fora do estúdio, as cenas mostram Guilherme nas ruas de São Paulo, resgatando memórias, e na Bahia, entre mares e matas. Vídeos antigos são raros, um deles registrando a parceria com Nando Reis, outro com Nelson Motta, outro com Paulo Leminski. Nas falas, contextualiza as músicas (o que se ouvia naquele momento, como andava o Brasil), revela suas influências (Ray Charles, Elton John, Stevie Wonder, Pink Floyd etc., sem contar os Beatles), comenta sua relação com as gravadoras, situa-se em meio às mudanças trazidas pela revolução digital, orgulha-se de ter sido gravado por Elis, Roberto Carlos, Bethânia, Belchior, Gal e tantos mais. Considerando-se um “imigrante” na Bahia, Guilherme adquiriu lá o status de mestre. Não se preocupa com o fato de já não “fazer sucesso”.
“Tô pronto para morrer e para o futuro”
Trecho de fala de Guilherme Arantes no documentário Uma Viajante Alma Paulistana: “Contando essa minha história acho que estou pronto para morrer. E quem está pronto para morrer, está pronto para viver. A juventude volta dentro de nós quando não tememos mais a morte, quando corremos para ela com a mesma desabrida desatenção de um jovem – que alternativa ele tem a não ser correr para a vida? Descobri um motivo grande para eu existir: agora faço o que quiser. Tenho muito chão ainda, tô cantando com a voz lá em cima, os mesmos tons das gravações originais. Tô pronto pro meu futuro.”
UMA VIAJANTE ALMA PAULISTANA: De Guilherme Arantes. Canal 3, Proac/SP, Coaxo do Sapo, DVD triplo, R$ 54.
ANTENA
BOSSA NOSSA
De Leny Andrade
Com 75 anos de idade e 60 de carreira, Leny Andrade é uma rara remanescente da bossa nova original. Na casa dos 80, o compositor Fred Falcão era um dos grandes fãs dela. Pernambucano radicado no Rio desde a década de 1950, Fred participou da explosão da bossa tocando piano em bares e acompanhando gente como Baden Powell, Ed Lincoln e Raul de Souza. Lançou um disco em 1972, praticamente sumindo de cena depois, só reaparecendo em 2007 com um álbum em que mostra grande influência de Tom Jobim. Este Bossa Nossa reúne 12 músicas dele e parceiros, homenagens explícitas ao gênero na voz inconfundível da cantora mais identificada com ele, acompanhada por um afiadíssimo quinteto que, entre outros, tem João Carlos Coutinho, Lula Galvão e Jorge Helder. Biscoito Fino, R$ 35.
TANTAS
De Anna Ratto
Após lançar em 2015 o quarto álbum, Anna Ratto ao Vivo, com uma retrospectiva da carreira iniciada em 2006, a ótima cantora carioca achou que deveria experimentar novas ideias. Chamou para produzir o novo disco os músicos Jr. Tostoi e Marcelo Vig e acertou na mosca. Gravando autores da nova geração, como Fábrio Trummer, João Cavalcanti, Tó Brandileone, Caio Prado, Bruna Caram e Rodrigo Maranhão, Tantas direciona o trabalho de Anna para a música contemporânea, com boas doses de eletricidade, pressão instrumental e programações eletrônicas, sem perder a essência de MPB. Tem samba, frevo, samba-canção, e duas valsas que são um exemplo de contraste: a futurista e ruidosa Nem Pensar e a lírica, suave e “antiga” Ana Luísa, só com as cordas do Quinteto da Paraíba. Biscoito Fino R$ 30.
CORAÇÃO DE ALFACE
De Izza Beatriz
Os compositores escolhidos por Izza Beatriz para fazer seu primeiro disco ficaram espantados ao ouvir o resultado. Um deles, Kleber Albuquerque, pergunta, no texto de divulgação: “O que esta menina, que deveria estar ouvindo Anitta, está fazendo envolvida com este tipo de música e poesia?”. E assim, todos os outros, Carlos Careqa (autor da faixa-título), Juliano Gauche, Fred Martins, Daniel Groove. Ocorre que a bela Izza, nascida no interior de São Paulo e atualmente vivendo nos Estados Unidos, tem apenas 17 anos e uma voz potente, extensa, afinadíssima. Ela escolheu canções de poética forte e esbanja versatilidade em variações de MPB pop. Os arranjos são de Rovilson Pascoal, que toca guitarra, violões, baixo e órgão, ao lado de Ricardo Prado nos teclados e Gustavo Souza na bateria. Sete Sóis/Tratore, R$ 15.