"Penso que chega um momento na vida da gente em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de eternidade." (Guimarães Rosa)
Demorei um tempo para entender que carência afetiva e timidez, duas condições que não são vistas como virtudes, podem ser úteis na concepção de um modelo de relacionamento pessoal mais generoso.
Se isso é verdade, e estou convencido de que sim, essas "fraquezas" podem se converter em vantagens na construção do perfil do cuidador de pessoas que é, na essência, o aspecto mais nobre e sedutor da relação médico/paciente.
A percepção de que a reciprocidade afetiva é a grande maravilha dessa profissão coincidiu com o início da experiência nova e desafiadora de trabalhar com transplante.
Recuando no tempo, ainda estudante ouvi de um paciente, pela primeira vez, que ele queria ser cuidado por mim, porque eu dava importância ao que ele dizia. Eu me encantei tanto, que nem me animei a dizer que eu ainda não era, de fato, um doutor, muito menos a explicar que ouvir era só o que restava a quem nem sabia o que perguntar. Mas saí daquela conversa determinado a ser, no futuro, o médico que ele imaginava que eu já fosse.
Daí em diante, tendo mergulhado nesse círculo virtuoso que estimula o cuidado de quem precisa de ajuda, e que isso generosamente garante um retorno afetivo sob a forma de gratidão, tudo passou a ter a naturalidade de ação e consequência.
A percepção de que a reciprocidade afetiva é a grande maravilha dessa profissão coincidiu, duas décadas depois, com o início da experiência nova e desafiadora de trabalhar com transplante, um intercâmbio emocional incomparável pelo perfil de irresignação e coragem de pacientes determinadas a viver, custasse o que custasse, e o quanto isso exigia de disponibilidade afetiva do médico.
Dez anos mais tarde, estava confortável por reconhecer o que significara o compartilhamento das emoções, das expectativas e dos medos que emergem com grande intensidade na convivência diária com a ansiedade dos pacientes aguardando o momento imprevisível do transplante, ou com o deslumbramento dos já transplantados, surpreendidos pelo comovente exercício de ressignificação da vida. Essa combinação tinha propiciado um incremento significativo no meu jeito de ser médico, porque tinha sido testado no que considerava, naquele momento, o grau máximo da relação de um médico com seu paciente. E eu, claro, tinha penado e aprendido muito.
E então, foi um susto quando mergulhei num mundo insuspeitado: o do transplante com doadores vivos, onde todas as exigências emocionais exercidas no limite do desespero, que eu já conhecia, agora ganhavam o acréscimo do amor incondicional de quem aceitava, e para a minha surpresa com alegria, a missão de ceder uma parte de si para que um amado seu tivesse uma última chance.
Marcou muito daquela época uma experiência que envolveu a busca dos dois doadores indispensáveis para substituir os pulmões destruídos de uma fofinha de sete anos, portadora de fibrose cística, e que era o centro afetivo daquela família. Com uma mãe determinada à doação e um pai incompatível, cogitou-se que uma irmã, de 14 anos, pudesse ser a segunda doadora.
Quando a comissão avaliadora se esmerou em apurar a maturidade psicológica daquela adolescente, e do quanto tinha noção do tamanho do gesto, ela foi definitiva: "Eu não quero discutir outras razões porque eu sei que não conseguiria viver se a minha maninha morresse porque eu não fui capaz de doar".
A solidez da decisão emergira do amor fraternal sem limites, esse sentimento que brota espontaneamente no coração dos que só querem retribuir, e que é sofisticado demais para se encaixar nos algoritmos inflexíveis da inteligência artificial.
Lembro de um jovem que confessara que doaria com convicção, mas que temia a operação para retirada de uma parte do seu pulmão para o transplante da irmã. Quando o encontrei na UTI, dias depois, ele massageava carinhosamente o tórax dela, e ao me ver, confessou: "Estou seguro de que este lobo não me fará falta. Só vim passar umas recomendações a este filho da mãe!".
Mais recentemente, me engasguei ao ouvir uma entrevista no rádio, de um jovem que, ao ser perguntado qual tinha sido a motivação para doar parte do seu fígado para um transplante na sua mãe, respondeu que "decidira doar porque não achava justo que o seu irmãozinho menor tivesse durante menos tempo o privilégio que ele tivera, de conviver com aquela mãe maravilhosa". Desliguei o rádio. As informações sobre o trânsito e as previsões de tempo podiam esperar. O choro, não.