"Vou cuidar só das crianças, porque nós, adultos, não temos mais solução." (Zilda Arns)
Quando ficou claro que o mundo se tornara mais hostil e sombrio, acendeu a luz amarela da solidariedade, alertando para a prioridade de nos tornarmos pessoas melhores, porque afinal só elas podem, no futuro, promover esta transformação. Como é pouco provável que os adultos mudem porque a couraça já enrijeceu com o gota a gota da indiferença, o foco da prevenção de iniquidades deve ser desviado para a infância, que, todos concordam, é quando forjamos a personalidade com a qual enfrentaremos a vida, cheia de alegrias, sobressaltos, decepções e alternativas de escolha.
Com o livre-arbítrio, podemos ser generosos ou cínicos, mas é muito difícil que consigamos ludibriar alguém parecendo diferentes do que somos, só porque circunstancialmente percebemos que determinada atitude prejudicaria a nossa imagem na sociedade. Ainda mais agora que o politicamente correto furou os olhos da pureza e passou a desconsiderar a intenção e a valorizar o discurso, que foi se esvaziando na medida em que muitos adjetivos foram sendo banidos, cedendo espaço para a hipocrisia, esse estágio da relação humana que é tudo, menos o que aparenta.
O politicamente correto furou os olhos da pureza e passou a desconsiderar a intenção e a valorizar o discurso.
Considerando o quanto é provável que seja verdadeiro o que se diz sobre da nossa herança genética, "o que Deus nos dá, dá lá atrás, e depois só conseguiremos ser o que sempre fomos", mais urgência devemos ter de trabalhar com as nossas crianças enquanto elas ainda são maleáveis e suscetíveis dê transformações. Não há nenhuma dúvida de que a maior ajuda que se possa dar à moldagem do caráter de uma criança será o estímulo à inteligência emocional, este atributo que nos separa dos outros animais e das máquinas.
Quando um pirralho ganha, por exemplo, seu primeiro cãozinho, alguém lhe abriu a porta para o afeto, que envolve a descoberta do quanto é inspiradora a tarefa de cuidar. Como viver em sociedade, na maior parte do tempo, é um exercício pleno de egoísmo, se pretende justificar que este encanto vá perdendo força com idade, em nome da necessidade fajuta de "cuidar de coisas mais importante", como se existisse algo mais crucial do que cultuar a nobreza dos nossos melhores sentimentos.
A depreciação desses valores explica, com sobras, as iniquidades que povoam a mídia, dando a sensação desconfortável de que a sociedade está em degeneração. Um dia desses, vi e revi várias vezes (e que mal que me fez!) um vídeo que mostra um carro parado na fila do pedágio, com um cãozinho sendo jogado pela janela, porque seu dono, obviamente, se fartara dele. Como o carro se deslocava lentamente, num arranca e para até a cabine de cobrança, o bichinho pulava e saltava na janela tentando ao menos entender a razão da expulsão. Quando o carro finalmente arrancou, ele ainda não tinha desistido, e correu e correu em desesperada perseguição. Até o fim do vídeo, com o carro sumindo no horizonte da câmera, ele seguia correndo.
Doeu muito aquela crueldade, mas, de tanto doer, acabou por despertar em mim uma certeza: aquele brutamontes não teve um bichinho na infância, nunca estabeleceu um vínculo afetivo verdadeiro, e morrerá na tristeza da solidão que os rígidos constroem, diariamente, sem perceber que não farão falta à ninguém.